Como a incerteza estimula o conhecimento científico


Na semana passada, conversei com uma amiga que sempre demonstrou ceticismo em relação a certos temas científicos. Durante uma discussão sobre novas descobertas na farmacologia, ela questionou a validade científica em um cenário de incerteza, argumentando que, se a ciência não pode garantir 100% de certeza, não devemos confiar completamente em suas conclusões. 

Confundir esse simples conceito é um erro comum, mas a maneira como esse questionamento é formulado revela diferentes significados por trás da “dúvida afirmativa”. Algumas pessoas usam a ausência de resolução em áreas analíticas como uma oportunidade para inserir crenças pessoais, como um tipo de “Deus das lacunas”. Outras, como minha amiga, parece interpretar a impossibilidade de confiança resoluta como um indicativo de que toda certidade é inválida. Se o filósofo David Hume estivesse participando de nossa conversa, ele certamente diria que a certeza absoluta é inacessível, pois o conhecimento é baseado em nossas percepções, que são, por inerência, falíveis.

Outro filósofo que abordou esse tema foi Immanuel Kant, em sua obra Critique Of Pure Reason, onde menciona que o entendimento inquestionável sobre o mundo externo é inalcançável devido às limitações humanas. Ele distingue entre o “fenômeno” — o mundo como o percebemos através dos sentidos e categorias mentais — e o “numeno” — o mundo como é em si. Enquanto podemos conhecer os fenômenos, o numeno permanece além da nossa compreensão. Essa diferenciação Kantiana levou a um ceticismo sobre a possibilidade de conhecer a “realidade última” e redefiniu a base da epistemologia moderna.

A ciência aceita e opera com a incerteza como um elemento primordial para o avanço do conhecimento, destacando sua natureza dinâmica, que evolui com a acumulação contínua de evidências. O filósofo Karl Popper, com sua tese do falsificacionismo, argumentou que a ciência não busca verdades irrefutáveis, mas ideais que podem ser testadas e refutadas. De acordo com Popper, o progresso científico ocorre por meio de tentativa e erro, com teorias sendo continuamente ajustadas e aprimoradas à medida que novos dados surgem.

O próprio desconhecimento científico também pode atuar como um catalisador para descobertas revolucionárias. Um exemplo emblemático disso é Albert Einstein. Antes de formular a teoria da relatividade, Einstein deparou-se com questões ainda não resolvidas pela física clássica. Sua incompreensão acerca do funcionamento da gravidade e a constância da velocidade da luz fez com que ele questionasse os alicerces da física newtoniana, o que levou a uma nova visão sobre espaço e tempo.

Marie Curie, durante suas investigações sobre a radioatividade, encontrou fenômenos que contradiziam as teorias químicas e físicas vigentes. Sua dúvida inicial no entendimento da natureza dos elementos radioativos a conduziu à descoberta de novos elementos, como o polônio (Po) e o rádio (Ra). Essas conquistas inovaram o campo da ciência e renderam a Curie dois Prêmios Nobel, consolidando seu legado como uma das maiores cientistas da história. 

Esses são apenas alguns casos que demonstram como uma abordagem sistêmica se fundamenta na interdependência das partes, reconhecendo que uma inspeção isolada é inadequada para compreender o todo. O valor do conhecimento científico não reside em sua infalibilidade, mas na sua capacidade de ser consistentemente verificável dentro do escopo empírico. É possível alcançar “certezas parciais” em um contexto de incerteza geral e produzir resultados cientificamente significativos.

Na área da farmacologia, a incerteza é inerente devido ao caráter multifatorial das interações bioquímicas. Ao investigar novas moléculas que possam interagir com receptores acoplados à proteína G (GPCRs) e afetar vias metabólicas intrincadas, os cientistas lidam com uma série de variáveis que podem impactar os resultados. Isso se reflete na complexidade dos experimentos que devem ser realizados para testar uma hipótese.

Farmacologistas não aceitam a dúvida passivamente; em vez disso, eles conduzem pesquisas iterativas e empregam uma gama variada de abordagens metodológicas. Isso inclui modelagem molecular, ensaios de afinidade, investigações de metabolização e a análise dos dados farmacocinéticos e farmacodinâmicos obtidos de modelos biológicos. Quando investigam um novo ligante para um GPCR, os testes in vitro de afinidade são apenas uma parte do processo; é crucial também incorporar técnicas como docking molecular, simulações de dinâmica molecular e análises detalhadas das vias de sinalização celular para obter uma compreensão completa do perfil farmacológico da molécula.

Por exemplo, vamos considerar um cenário simplista onde se hipotetiza que uma nova molécula, denominada NZT-48, atua como um agonista parcial em um GPCR específico, envolvido na regulação da resposta inflamatória. Para testar essa hipótese, seria necessário realizar uma série de procedimentos, incluindo ensaios de ligação competitiva para avaliar a afinidade da molécula, ensaios de reporter para medir a ativação da via de sinalização downstream, e experimentos de microscopia confocal para investigar a internalização e sequestro do receptor.

Além dos testes mencionados, a modelagem in silico poderia prever as interações entre a molécula NZT-48 e os sítios ortostéricos e alostéricos do GPCR, enquanto pesquisas sobre a metabolização hepática avaliariam a estabilidade da molécula em sistemas biológicos. Exames de toxicidade celular seriam realizados para identificar possíveis efeitos colaterais, e modelos animais de inflamação seriam empregados para validar os efeitos anti-inflamatórios observados in vitro.

Nenhum desses experimentos isoladamente garante confiabilidade irrestrita quanto à eficácia da molécula NZT-48 como agonista parcial. No entanto, a convergência dos resultados obtidos através desses diferentes processos holísticos permite afirmar, com um alto grau de confiança, que NZT-48 modula efetivamente a resposta inflamatória por meio da ativação do GPCR.

Se, após uma abordagem metodológica rigorosa, a hipótese ainda não for convincentemente sustentada, há pouco a ser feito para persuadir um leigo inflexível. Da mesma forma, se múltiplos estudos integrados sobre a interação de NZT-48 com o GPCR forem considerados insuficientes por pesquisadores para determinar o potencial terapêutico dessa molécula, então não estão pensando de forma científica.

 


Referências

- Katzung, B. G., & Masters, S. B. (2012). Basic And Clinical Pharmacology. McGraw-Hill Education.

- Kant, I. (2007). Critique of Pure Reason. Penguin Classic.