O Papa é Pop - Análise do álbum faixa a faixa



Há aproximadamente 30 anos, em outubro de1990, a banda Engenheiros do Hawaii lançava O Papa é Pop, aquele que viria a ser o álbum de maior sucesso da história do grupo. Produzido pelos próprios 'Engenheiros', o trabalho foi lançado em LP, CD e K7. Ele rendeu ao grupo certificado de platina além dos títulos de melhor banda de 1990 por votação da revista Bizz [1] e também pelo Troféu Imprensa [2]

Tendo como principais hits Era Um Garoto Que Amava os Beatles e os Rolling Stones, Pra Ser Sincero e a faixa título, o álbum foi o terceiro de estúdio com a formação clássica da banda, formada por Humberto Gessinger, Augusto Licks e Carlos Maltz, o famoso trio GLM. Antes, os três haviam lançado A Revolta dos Dandis (1987), Ouça o Que eu Digo: Não Ouça Ninguém (1988) e o ao vivo Alívio Imediato (1989). Como participações especiais, estavam no álbum a cantora Patricia Marx, que estava começando a carreira solo após deixar o bem sucedido Trem da Alegria, e o grupo Golden Boys, sucesso da época da Jovem Guarda. 

Antes de entrarmos em maiores detalhes sobre o álbum, precisamos conhecer alguns personagens que, de certa forma, foram importantes em sua construção. Um deles é Leonel Brizola (1922 - 2004). Um ano antes do lançamento de O Papa é Pop, o político concorria à Presidência da República contra nomes como Lula e Fernando Collor de Melo. 

Brizola era declaradamente a primeira opção do grupo para candidatos a assumir o Planalto, tanto que os 'Engenheiros' fizeram três shows de graça nos comícios do então candidato. Foi em um desses shows que Humberto redescobriu o que viria a ser o maior sucesso do futuro álbum. Surpreendido com um contratempo que impediu Brizola de subir ao palco no tempo previsto, o grupo tiveram que 'espichar' o show. 

Sem repertório, Humberto teve a ideia de cantar Era Um Garoto Que Como Eu Amava os Beatles e os Rolling Stones. É uma canção italiana que ganhou uma versão no Brasil na década de 60 na voz do grupo Os Incríveis. Era uma das músicas preferidas do vocalista, que ganhou seu primeiro violão para aprender a tocá-la. Essa também era uma das únicas músicas que não eram do 'Engenheiros' e que o grupo sabia tocar em sua totalidade. 

Brizola ainda ajudou na construção da capa do LP. Seria uma arte bastante simples, com os três integrantes da banda sentados em uma sofá, se não fosse um pequeno detalhe. Na parte superior, o grupo ostenta um quadro icônico do Papa João Paulo II bebendo chimarrão. O quadro pertencia a Brizola e foi cedido gentilmente à banda para a composição da capa. 



O encarte de O Papa é Pop ainda contou com um pedido de desculpas a Lulu Santos. Em 89, Humberto havia citado Lulu em uma entrevista o chamando de "entretainer", o comparando a nomes como David Copperfield e Silvio Santos.

"Um sincero pedido de desculpas a Lulu 'Heil Gessinger' Santos"

De acordo com o jornalista Alexandre Lucchese em seu livro Infinita Highway: Uma carona com os Engenheiros do Hawaii, Lulu não deve ter gostado nada da classificação, ainda mais vindo acompanhada de um nome como o de Silvio Santos. Quase candidato à presidência no mesmo ano, o apresentador e dono do SBT não era visto com bons olhos por artistas mais progressistas como Lulu.

Para piorar, a matéria que havia mostrado a opinião de Gessinger sobre Lulu mostrava uma entrevista recente do cantor carioca elogiando os Engenheiros como um "trabalho positivo". Em entrevista para a Folha de S.Paulo em outubro de 1990, Humberto contou que Lulu ligou para sua casa o chamando de nazista. Por isso o "heil Gessinger" no pedido de desculpas de O Papa é Pop. 

Na mesma entrevista, o vocalista explica o conceito por trás do trabalho. Ainda de acordo com Lucchese, o vocalista queria por em cheque uma postura de falsa ingenuidade que bandas de rock tentavam manter em relação à indústria musical. Na época, tais grupos não abriam concessões a gravadoras e nem ao púbico e rechaçavam qualquer tentativa de tornar suas músicas mais populares ou palatáveis para as massas. Quem ia pela contramão era tachado de pop. Mas se até o representante máximo de uma das instituições mais antigas da humanidade como o Papa se dispunha a parecer popular a ponto de se fotografar com símbolos da cultura local como um chimarrão, o que dizer de músicos que só sobreviviam graças a aparições em rádios e emissoras de TV? 

Se apegando a esse conceito, a banda tentou levar ao máximo esse conceito pop para o álbum, sem deixar de lado as características marcantes do rock que a consagrou, como solos memoráveis de Augusto Licks e um baixo bastante destacado de Humberto. A guitarra com um som bastante limpo e até elementos presentes na capa, como Marilyns Monroes serigrafadas contribuíam para o aspecto pop.
 


Faixa a faixa


O Exército de Um Homem Só I


Primeira música do álbum, a canção é dividida em duas partes, algo que já havia sido feito em A Revolta dos Dandis com a música título. Trata-se uma música inspirada no livro homônimo do escritor  Moacyr Scliar que conta a história de uma espécie de Dom Quixote gaúcho que tenta construir uma sociedade coletivista utópica [marxista, pra deixar mais claro], apesar de tudo e todos contra ele. Na música, o Exército de um homem só adota posição coletivista, como se representasse a banda, não necessariamente levando para o lado marxista, e sim como um grupo que desafia as convenções da sociedade em que está inserido.

Era Um Garoto, Que Como Eu, Amava os Beatles e Os Rolling Stones


Primeiro cover da carreira dos Engenheiros do Hawaii, como já mencionado na introdução do texto, a música conta a história de um garoto americano que é chamado para lutar na Guerra do Vietnã. Fã de rock e principalmente dos Beatles e dos Rolling Stones, ele corta o cabelo, troca a guitarra pela arma e acaba morrendo no campo de batalha, mas com uma medalha no peito. Na parte final da música, um solo de guitarra do Hino da Independência do Brasil, especialmente referente à parte de "ficar a pátria livre ou morrer pelo Brasil".

O Exército de Um Homem Só II


Essa música, que como já indicado é um complemento da primeira, tem um teor mais crítico que a primeira faixa do álbum. Ela expõe uma série de contradições como ser quase livre, o que é pior do que a prisão, ou vampiros que odeiam sangue. Enquanto a primeira adota um tom mais orgulhoso em relação a ser um homem só, essa adota um mais crítico. Interessante Era um Garoto... ter sido colocado entre as duas. Podemos interpretar que o "homem só" pode ser simplesmente o garoto sonhador, que foi para o Vietnã e que lá morreu. Na terceira música, ele se dá conta da utopia de ser um homem só, sendo que o "homem" não é livre, nem mesmo para decidir se quer ir defender seu país na guerra ou não. Se antes ele era um homem "sem bandeiras, sem fronteiras para defender", agora foi morto justamente fazendo isso contra sua vontade.

Nunca Mais Poder


Depois de fechada a trinca inicial do álbum, a música seguinte chega com uma ótica filosófica. Ao meu ver, é a canção mais difícil de compreender o que o compositor quis dizer. A primeira observação que cabe destacar é que "eterno" não quer dizer eterno por si só, e sim apresentar um contraponto a "moderno". Se um dia algo é moderno, no outro dia só existirá nos livros de história ou na memória de alguns, sendo o "eterno" uma questão puramente memorial. É uma máxima para o compositor dizer em outras palavras que "todo mundo é igual" e que embora você seja moderno atualmente, você será eterno no futuro. Todo mundo, sem exceção. Ele usa o exemplo de um relógio antigo, que era moderno quando lançado, mas que é eterno, pois mesmo não sendo mais moderno ainda é capaz de mostrar as horas. No final, uma reflexão: "Então, porque esse medo de ficar pra trás, de não ser sempre mais, de nunca mais poder?".

Pra Ser Sincero


O álbum tem pelo menos três baladas românticas, mas Pra Ser Sincero é a mais conhecida tanto do LP quanto da própria carreira dos Engenheiros do Hawaii. Iniciando no piano, a música conta a lamentação de um homem que sofre com a separação da amada após ter feito algo horrível, digno de ter sido comparado a "vender a alma ao diabo". Mesmo assim, ele espera que continuem bons amigos com o fim do relacionamento, mesmo sem ele esperar que ela o perdoe. Ele, no entanto, tem esperanças de que os dois se encontrem no futuro e encontrem alguma explicação para o ocorrido, ou que simplesmente continuem bons amigos e se despeçam com um "até mais". Esse, inclusive, é o ápice da música, que transita da lamentação da despedida bem sonorizada com o piano para uma explosão da bateria de Carlos Maltz no trecho final, também acompanhando o piano.

Olhos Iguais Aos Seus


Com clima e ritmo inicial de balada romântica, Olhos Iguais Aos Seus pode ser facilmente confundida com uma em seu trecho inicial, mas pode ser entendida também como uma crítica social de Humberto Gessinger. Com uma letra pequena, ele questiona "o que faz as pessoas parecerem tão iguais" e, mais no trecho final, dá a entender que essa igualdade é promovida pelas próprias pessoas ao questionar "o que fazem as pessoas para serem tão iguais".

O Papa é Pop


Polêmica na época, O Papa é Pop pode ser considerado a última da trinca de hits do álbum, junto com Era Um Garoto... e Pra Ser Sincero. A música é uma crítica principalmente à cultura em torno de saber o que acontece com as celebridades, que pode ser traduzida como a popular fofoca. Nesse mundo dos famosos, qualquer coisa que se mova é um alvo, e ninguém tá salvo. Mas não são apenas artistas que se salvam dessa cultura, que inclui presidentes da República e até mesmo o Papa. Na época, o sumo pontífice da Igreja Católica era João Paulo II, conhecido por muitos por ser um Papa carismático e por ter virado uma espécie celebridade. No final, Gessinger questiona "o que é rock'n roll: os óculos do John ou o olhar do Paul?", novamente fazendo referência à cultura de se interessar mais por aspectos pessoais ou até visuais das pessoas da mídia do que por seu trabalho. 

A Violência Travestida Faz Seu Trottoir


Pra mim, uma das melhores músicas do álbum, se não A. Com a participação de Patrícia Marx, que estava dando seus primeiros passos na carreira solo em 1990, a música faz um passeio mostrando por onde passa a violência travestida, ou seja, aquela que não está explícita e que aparece de maneira disfarçada. Trottoir, inclusive, é uma palavra francesa que significa calçada, por onde passa algo ou a alguém, mas é mais usada para se referir ao local onde ficam as prostitutas a fim de conseguirem clientes. Entre alguns exemplos citados na música, estão "armas de brinquedo" ou até "anúncios de cigarro que avisam que fumar faz mal". E essa violência está em todo canto: na mídia, na moda, nas farmácias. A participação de Patrícia Marx, inclusive, é uma das partes mais bonitas da música. Ela conta a história de um fã de apresentadora infantil que se suicidou. Tudo o que ele deixou foi uma carta de amor para ela. Apaixonado e tendo certeza que as chances de encontrá-la aqui eram nulas, ele se suicidou com a certeza que um dia a encontrará em algum lugar. 

Anoiteceu em Porto Alegre


Trata-se de um hino sobre a cidade de Porto Alegre e que conta com várias referências sobre a cidade. Conta em pouco menos de sete minutos a noite de um homem na noite escura de Porto Alegre. Ele percorre várias esquinas e consegue fazer várias observações sobre os acontecimentos que presencia. Entre elas, um pastor exorcizando no rádio de um táxi, coisa que eu não imaginava que já era comum na época em que a música se passa. O homem também ouvia, pelo rádio, a decisão da Taça Libertadores de 1983 contra o Peñarol, o primeiro título do Grêmio na competição. “Eu disse que acreditassem! Eu pedi que acreditassem! Eu nunca deixei de acreditar que o Grêmio ia ser campeão da América, hoje, esta noite, em Porto Alegre”, disse o narrador na ocasião, cuja gravação foi parar na canção. No final da música, o começo do dia, com uma citação ao clássico dos Beatles: Here Comes The Sun, quando recomeça tudo lá fora.

Ilusão de Ótica


Música mais descartável do álbum, pode ser entendida como uma brincadeira de Gessinger e dos Engenheiros com o pessoal que costumava girar discos ao contrário para encontrar mensagens satânicas ou subliminares. Quem vê a música em seu modo normal, tradicional, percebe em determinado momento uma série de palavras embaralhadas, que nada mais é que o áudio original ao contrário. Quando alguém "girava" o vinil, prática possível nas antigas vitrolas, encontrava: "Porque é que cê tá ouvindo isto ao contrário? O que é que cê tá procurando?", dentre outras palavras aleatórias.

Perfeita Simetria


Última canção do álbum, a música não foi lançada em sua versão em vinil, apenas nos CD's. Com a mesma melodia de O Papa é Pop, mas toda no piano com detalhes na guitarra, a música é mais uma das baladas românticas do álbum. Trata-se de um homem perdidamente apaixonado por uma mulher que quer a todo custo reatar o relacionamento. Ele relembra com prazer o tempo em que nada os dividia e quando havia motivo para tudo e tudo era motivo pra mais. Pode ser facilmente encaixada após Pra Ser Sincero, que tratava o contexto de uma separação. Ele ainda pede para que a amada perdoe o que pode ser perdoado e que esqueça o que não tem perdão, fortalecendo esse indício de que as músicas se completam.