A cultura das novelas como rotina dos brasileiros

Rotina de boa parte dos brasileiros, as novelas são assistidas diariamente por milhões de pessoas que, por sua vez, têm vasta opção em títulos dramaturgos à disposição na TV. Muitas são as histórias contadas e vários são os temas abordados, que não raramente geram discussões e debates sobre o que foi exibido ou pelo apelo que tal história pode gerar. Há quem defenda que as novelas incentivam de acordo com o que foi mostrado. Outros, indicam que esse tipo de entretenimento é tão somente para divertir. As próprias emissoras se baseiam pela livre criação artística, onde os fatos mostrados seriam “meras coincidências com a vida real”.
Figurando sempre entre as maiores audiências da TV aberta, o alcance das novelas é extremamente amplo, atingindo todos os públicos. Contendo vários núcleos, uma só novela pode mostrar várias realidades de uma mesma sociedade. Mansões, carros luxuosos e lugares paradisíacos servem de cenários para muitas das histórias, enquanto favelas, circos ou tantos outros lugares ilustram o que muitos não tem acesso. Entramos, portanto, na fuga pela realidade: ver o que comumente não se tem acesso.
Convidamos Guilherme R. (grande conhecido comentarista do Disqus e responsável por antigos sites do gênero), Raul Dias (colaborador do site RGB e comentarista do Disqus) e, claro, Felipe A. (comentarista especialista em assuntos de novela) para comentar o papel social desse tipo de segmento televisivo, o debate que elas podem gerar e o seu futuro, de modo a continuar atraindo os antigos e conquistado novos públicos. Para isso, tivemos como base produções brasileiras, que são produzidas pelas três maiores emissoras de TV.

Conscientização ou exposição de imoralidade?
A princípio, a abordagem de temas pesados, como por exemplo racismo, abusos – tanto sexuais quanto psicológicos -, tráfico e tantos outros temas já foram expostos novelas. Em casos recentes, A Força do Querer (Globo) que teve um núcleo composto por tráfico e O Outro Lado do Paraíso (Globo), que já no primeiro capítulo exibiu uma cena de abuso sexual. Os debates em ambos os casos foram inevitáveis, partindo da tese da necessidade de tais cenas com tamanha exposição, servindo para o público em massa como conscientização ou meramente um incentivo para a imoralidade.
Guilherme defende o pressuposto da conscientização “a grande parcela toma uma visão diferente do que eles tinham antes, quando uma novela retrata esses assuntos. Apesar de que sim, muitos vêem nas novelas o que acham que podem fazer na vida real, naturalmente, sem pensar nas consequências. Esse ponto de vista, depende muito de cada pessoa, como ela leva pra si o que vê não só nas novelas, como na TV em geral”.

“(…) muitos vêem nas novelas o que acham que podem fazer na vida real, naturalmente, sem pensar nas consequências”, Guilherme 


De igual modo, Raul Dias parte para o mesmo princípio: “eu acredito que isso serve para conscientização. A melhor arma para o combate de preconceitos e atos ilícitos é o conhecimento, e a melhor forma de se obter isso é retratando a realidade como ela é. Passar para o público um mundo idealizado, onde não existam tais problemas, só podem servir para piorar nossa realidade. Afinal, como diria Glória Perez, não tem como falar dos médicos, sem citar os doentes, fazendo uma analogia.”
Felipe já supõe que não há problemas quando se sabe como dirigir a cena: “acredito que a abordagem de temas polêmicos nas novelas, são de um serviço social importante para conscientizar a sociedade em que vivemos, o que pode parecer apelação é de como tais cenas polêmicas são conduzidas pela produção ou autor”.

Vale tudo? 
Por ser uma obra de livre criação artística, todo cuidado no que será apresentado é pouco. O que levanta a questão do que é válido, ou não, exibir. Ou se, de fato, deva haver algum limite no que será abordado. E quando falamos em “limites”, estamos nos referindo ao que pode ser ético – ou não – ao público.
Guilherme R. se apoia a liberdade total, desde que se tenha consciência de quem possa estar vendo e que a cautela deva vir dos pais: “vale tudo, claro. Mas, dependendo do horário em que tal conteúdo é exibido. Pra isso as emissoras indicam a CI [Classificação Indicativa] de cada produto da grade, principalmente das novelas. Se uma criança vê tal cena ”constrangedora” o problema será dos pais que não procurou saber se o mesmo podia ou não ver, responsabilidade dos maiores de idade.”
Também citando a Classificação Indicativa, Raul defende a liberdade artística: “eu acredito que a emissora tem total liberdade para exibir o que lhe é conveniente, existe classificação indicativa e controle remoto pra isso, se o público não concorda é só exercer sua democracia e mudar de canal.”
Para Felipe, a liberdade é totalmente válida desde que se respeite os direitos individuais: “apesar de eu ser liberal diante de tais cenas, acredito que existe sim um limite, desde que não denigra por exemplo os direitos humanos e seja para usar contra um grupo de pessoas ou nação.”

A produção de novelas no Brasil
A Globo é, inquestionavelmente, a maior produtora de dramaturgia do País e figura entre as maiores mundiais, também sendo uma das que mais exportam esse segmento. Teria a Globo algo em especial?


Estúdios Globo: a Central Globo de Produções, no Rio de Janeiro

Guilherme R. aposta no quesito mais visível: “Na qualidade. Isso é indiscutível, talvez nem todas as histórias sejam realmente boas como as de outros países, mas a qualidade como uma trama da Globo é tratada é surreal. Vale de cenários, imagens, atores, etc. Vários fatores. Além claro de assuntos polêmicos abordados nas novelas que passam o maior realismo possível, diferente de outras que tem ”medo” ou por não conseguir mesmo tratar tal assunto de boa maneira.”
Já para para Raul Dias, profissionalismo é a chave: ” a Globo se difere em investimento e profissionalismo. A emissora possui um planejamento invejável, além de não economizar em suas produções, que tem um grande apelo popular. Tem também o fato de a emissora possuir fairplay com seus concorrentes, diferente de outras aí que não podem ver um sucesso que já querem sair desmerecendo os outros [risos]”
E mais uma vez, o quesito “qualidade” é citado e, dessa vez, por Felipe: acredito que a Rede Globo utiliza seus recursos em suas produções para que traga de maior qualidade seus produtos para o público brasileiro. É uma forma de colocar temas pesados para mostrar ao público a realidade como ela é.”

“É uma forma de colocar temas pesados para mostrar ao público a realidade como ela é”, Felipe A.


Novelas off-Globo
Audiência e repercussão são dois fatores em que a Globo se sobressai muito. Entretanto, a dramaturgia é um setor que tem progredido muito na concorrência. Mesmo que seja como um fenômeno meteórico uma novela na Record TV ou no SBT fazerem um grande sucesso, essas emissoras vem utilizando vários artifícios para que o sucesso seja contínuo novela após novela.  precisam para estarem um passo à frente em termos de produção dramaturga? Faltam muitos passos que elas se igualem?
Guilherme R. defende que sim. “Muitos [passos à frente]. Talvez a Record nem tanto, o que precisa mesmo é sair do comodismo atual das tramas bíblicas e apostarem em novos autores e atores. Já o SBT, por completo, de cenário de papelão a tramas infantis remakeadas mexicanas a um vasto elenco diferencial.”
Quanto à Record TV e SBT, Raul destaca o planejamento: “elas precisam estar dispostas a investir, principalmente o SBT, que tem certa preguiça em inovar. Quanto à Record, eu acredito que a interferência da igreja seja bastante prejudicial para o andamento da emissora. Enfim, ambas precisam deixar de ter preguiça em investir e ter profissionalismo acima de tudo [enfatiza], além de um planejamento a longo prazo.”
Felipe frisa o investimento, só que assertivo: “acredito que a Record e SBT precisam investir mais em seus produtos, mas o caso da Record é diferenciado, porque é uma emissora que investe milhões em seus produtos, porém não costumam fazer um estudo de seu público alvo, se deixa influenciar pela IURD, com isso, afasta o público diferenciado, que não é adepto da religião imposta pela emissora.”

Mas será mesmo que a Globo teria vantagem em tudo? “A simpatia que às vezes falta em seus programas, principalmente os de auditórios, que em vista das outras, perde muito”, aposta Guilherme. Com exatamente o mesmo raciocínio, Raul critica os programas de auditório da Globo: “se tem uma coisa que, pra mim, a Globo não sabe fazer atualmente é programa de auditório. Não dizendo que os das concorrentes sejam exemplo de qualidade, mas eu acho que ocorre de maneira mais natural. Na Globo, os programas do gênero são muito artificiais, até a plateia eu acho forçada, e faltam apresentadores carismáticos para esse segmento”. Felipe assegura que a Globo peca por esquecer o público mais conservador: “o que falta na Globo são algumas ponderações e a leveza em alguns produtos, algo voltado ao público mais conservador, uma sugestão minha, seria separar alguma programação para ser retratado alguma realidade de forma mais leve, como algumas minisséries, sem que sejam tão explícitas. Vivemos em um mundo totalmente dependente da internet e de velocidade de informações, e as novelas da Globo por exemplo são muito afetadas hoje em dia, o certo seria diminuir a quantidade de capítulos e poupar enrolações e desgastes desnecessários”.

Afinal, o que uma novela deve e não deve ter?
Perguntamos aos entrevistados o que eles acham:
“Uma história boa, de verdade. Temas em que o povo quer realmente ver, e sim com os tradicionais vilões fortes e mocinhos sofredores. Pra mim o que deve ser dispensado é a quantidade de fases que as novelas atuais estão tendo. Muitas que fazem o público ficar confuso e trocar de canal” – Guilherme.
“Uma novela precisa ter carisma para empolgar, isso é fundamental. Uma boa história, bons personagens, e o equilíbrio de histórias pesadas e o humor, que na minha opinião é essencial para o sucesso de uma produção televisiva, uma quebra de clima é bom para o público, ninguém merece aguentar clima pesado o tempo inteiro” – Raul Dias.
“Com a existência das plataformas de streaming como Netflix e outros, faz com que desperte a curiosidade de um determinado público, acredito que esses clichês cada dia menos desperta a curiosidade das pessoas que já conhecem a mesma história, a TV Brasileira independente de emissora, precisa se reinventar de novo” – Felipe

Fórmula de fazer novela
A repetição de histórias, estilos de personagens idênticos e o manjado final feliz são receitas usadas sempre. Entram na discussão a falta de criatividade pelo esgotamento de histórias a serem contadas ou o (des)uso da fórmula que já tem um rendimento esperado, aquele que, dentre outros, tem a mocinha, a paixão proibida e o vilão que não se dará bem no último capítulo.
O Guilherme R. aposta pelo básico de sucesso: “é mais pela fórmula. Sempre dá certo, né? A maior parcela do público das novelas querem sempre esses plots. Mas, não tem como negar que o esgotamento de história também pode ocasionar isso. São muitas novelas em um mesmo canal e, em outros, acaba ficando sem roteiro’inédito’ para contar”.
Enquanto Raul ressalta que o problema não é um só: “eu acredito que seja um pouco dos dois, mas principalmente por causa da questão do retorno certo, várias novelas que tentaram inovar por aí, foram um fracasso total, mesmo apresentando histórias ‘inéditas’, pelo simples fato de fugir da fórmula mágica do sucesso”.
Aposta no mesmo segmento
Não obstante na aposta pela fórmula de sucesso, Record TV e SBT investiram na ideia de dominar um segmento. Enquanto a primeira tem em seu portfólio diversas produções bíblicas, a segunda faz isso com as infantis. Seria uma aposta boa?
“Sim [seria uma boa aposta], pois alcançam a maioria do seu público, porém tudo tem limite né, ambas deveriam apostar em novas histórias, nem que inicialmente [enfatiza] sejam um pouco parecidas com as atuais, porém mudando ao passar dos tempos.” – Guilherme R.
“Não, isso tudo é uma fase, não dura mais muito tempo, e isso já é visto nos números atuais das bíblicas. São nichos muito limitados para a demanda do público, não deve durar mais muito tempo.” – Raul Dias
“Sim, é uma boa aposta, sim [o uso do mesmo segmento], porém, o que peca nessas duas emissoras, é o fato de abusar de um tema diferenciado, provocando o cansaço do público, como a Record tem feito com suas novelas bíblicas”, completa Felipe A.

O futuro das novelas
Diante de tantas séries, conteúdo exclusivo para internet e vários outros artifícios para atrair a atenção do leitor, vê-se a necessidade de correr atrás de um possível prejuízo. Indiretamente, Netflix e a própria internet são potenciais concorrentes e uma saída para uma possível defasagem pode ser se aliar com ambos. E daqui pra frente, o que podemos esperar? Fizemos essa pergunta para nossos convidados.
“Ah, difícil essa pergunta… Bom, eu acho que como disse antes, as emissoras apostando sempre no que o público vem se acostumando a ver de muitas gerações atrás, com algumas alterações e diferenciações, o sucesso das novelas tanto aqui no Brasil como no mundo será eterno. Só não podemos abusar sempre da mesma fórmula, devemos buscar [novidades], mesmo que fracassemos no início, um diferencial” – Guilherme.
“O futuro da novela só depende dela mesma. Podem existir milhões de tecnologias que se assemelhem a TV, mas se uma história for realmente boa, não tem quem segure o sucesso. Diziam que as novelas se viam ameaçadas por Netflix, por exemplo, e veio A Força do Querer, Os Dez Mandamentos, etc. provando que, o que basta, é a história e não o monopólio” – conclui Raul.

“Como disse nos tópicos anteriores, a TV Brasileira precisa se reinventar, as novelas precisam se transformar, diminuir cada vez mais os capítulos, se tornar cada vez mais ágil, para que não haja desgastes desnecessários e perca de público e audiência, porque a perca de audiência, menos publicidade e menos capital” – Felipe

“O futuro da novela só depende dela mesma. Podem existir milhões de tecnologias que se assemelhem a TV, mas se uma história for realmente boa, não tem quem segure o sucesso”, Raul



As novelas tendem a ter um futuro longânimo! Em um debate, valemos da divergência de ideias. Contudo, destacamos, em um caso parecido, o quão curioso é quando as ideias se assemelham: e esse debate foi um caso. Agradecemos fortemente os convidados que prontamente se disponibilizaram a responder.

Quadro produzido e comandado por Danilo Marroni.