Identitarismo e o declínio da racionalidade na sociedade

No âmago da evolução do conhecimento, a história da humanidade testemunhou o florescer de realizações notáveis que deram forma ao nosso discernimento do universo circundante. Este ascenso gradual foi moldado, em grande medida, pela aplicação do pensamento resoluto, cujas raízes remontam à Grécia Antiga, especialmente à Escola Peripatética. O célebre filósofo Aristóteles, em seu conjunto de escritos nomeados como Organon, fixou os princípios do pensamento lógico ao estabelecer bases para uma compreensão ancorada em raciocínios formulados, consolidando alicerces cruciais do saber sistemático. Lamentavelmente, a ascensão contemporânea identitária tem obscurecido as proposições aristotélicas com uma névoa insidiosa. A busca pela intelecção do objeto conhecido encontra-se comprometida pelo enrijecimento de paradigmas ideologicamente estabelecidos. 




A política identitária é comumente atribuída à sua origem nos movimentos sociais nas décadas de 1960 e 1970 nos Estados Unidos e Europa. Tendo adquirido ao longo do tempo uma série de conotações divisivas, este tipo de política visa, em síntese teórica, a dissipação de injustiças sociais. No entanto, na prática, sua manifestação extrema tem suscitado apreensões quanto ao impacto negativo na sociedade e nas instituições nos últimos tempos. A persistência de ataques repetidos contra cúpulas discentes e docentes tem sido uma constante, revelando estatísticas alarmantes. Dados da Foundation For Individual Rights And Expression (FIRE) demonstram que a prestigiada Harvard University ocupa apenas o 170° lugar entre 203 universidades no índice de liberdade de expressão. Entre 2014 e 2022, houve 877 casos de tentativas de punir acadêmicos por expressões protegidas pela Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos. Cerca de 60% dessas tentativas resultaram em sanções efetivas, incluindo 114 incidentes de censura e 156 demissões, sendo 44 delas de professores com titularidade. Segundo levantamentos do professor e psicólogo Steven Pinker, esse número de demissões é maior do que o registrado durante a era do Macarthismo.

Essa supressão do pensar oposto ecoa ilustres obras distópicas do século XX, em que vozes dissidentes são silenciadas em favor de uma única ideologia. Reflete o tipo de sociedade totalitária descrita por George Orwell em Nineteen Eighty-Four, onde o Grande Irmão controla o pensamento e impede qualquer forma de dissensão. A verdade na fictícia Oceania é moldada pelo regime e submetida a um constante processo de revisão mediante ao Ministério da Verdade, sufocando quaisquer resquícios contrários. Em conformidade com a Polícia do Pensamento delineada no romance de Orwell, os identitários — embora apreciem condenar autoritários — revelam-se tiranos em sua própria atuação. Ao invés do diálogo informativo, inclinam-se para o amordaçamento intelectual, afastando-se da verdadeira essência de uma discussão socrática. É análogo com que acontecia entre as sociedades punitivas medievais, a diferença é que se chamava apedrejamento (literal e metafórico). Decerto, muitos militantes hoje gostariam de apedrejar certos detratores, sobretudo no meio acadêmico.

No contexto do panorama político de 2017, durante o qual analistas engajavam-se em acalorados debates acerca dos desdobramentos da eleição presidencial dos Estados Unidos em 2016, o livro The Once And Future Liberal: After Identity Politics, do cientista político Mark Lilla, emergiu como uma crítica contundente — ao propor uma reflexão sobre a necessidade de reformular estratégias na construção de uma visão política mais assertiva. Lilla foi incisivo ao apontar que a excessividade de movimentos como Black Lives Matter, LGBT e feminismo transformou causas legítimas em contraproducentes, afirmando que a ênfase na identidade é o reaganismo (alusão ao ex-presidente Ronald Reagan) para esquerdistas: incita rancor entre grupos e amplia a divisão social. 
Outro que teceu opiniões a respeito foi John McWhorter, professor de linguística na Columbia University. Por meio de sua obra Woke Racism: How A New Religion Has Betrayed Black America, ele argumenta como certas condutas coletivistas promovem uma visão distorcida do passado e presente, proporcionando uma realidade segregaria em vez de inclusiva. 
Wendy Brown, professora de ciência política na University Of California, complementa o enfoque crítico explicando que identitarismo, ao invés de promover construção, por vezes intensifica ressentimentos ao vincular virtude ao sofrimento, contribuindo para um questionável senso de pertencimento étnico.
Notadamente, o extremismo praticado pelos famigerados “libtards” foi crucial para o avanço do Trumpismo no decurso de tempo.

As consequências dessa retórica alarmista têm sido analisadas de perto no campo da saúde mental. Richard McNally, diretor do departamento de psicologia da Harvard University, explica que os convencionais “avisos de gatilho” têm efeitos prejudiciais, pois, ao incentivar a evitação de uma potencial lembrança associada a eventos difíceis, compromete o processo de recuperação vinculado ao problema. O psicólogo Jonathan Haidt, em seu livro The Coddling Of The American Mind, descreveu como a mentalidade voltada para o segurancionismo (fixação na segurança emocional em detrimento do enfrentamento de adversidades) contribuiu para a degradação psicológica dos jovens, manifestando-se, muitas vezes, em um ressentimentalismo camuflado de justiça social. Essa dinâmica cria um ambiente propenso a um tipo de comportamento retaliativo em favor de um grupo seleto, ressoando com as observações de Friedrich Hayek, que notou como, frequentemente, quando a palavra “social” é integrada a outra em âmbitos radicais, ela passa a representar o contraposto. O contrassenso identitarista reside em sua capacidade de cercear a habilidade de pensar e agir de uma maneira que verdadeiramente promova as mudanças que proclama desejar. Evidencia-se por meio de uma profusão controversa de práticas, como: busca superficialista de inclusão em organizações, negacionismo — bem como a criação de dialeto burlesco para se adequar a sua rúptil realidade pessoal — em um autêntico culto à catastrofização.




A expressão “stay woke” está presente no African-American Vernacular English (AAVE) desde a década de 1930. Embora seja difícil determinar com exatidão o começo de seu uso político, presume-se que remeta ao século XIX nos Estados Unidos. Em sua acepção original, conforme mencionado pelo linguista e lexicógrafo Tony Thorne, significava estar alerta para a discriminação e danos sistêmicos sofridos pelos afro-americanos. No entanto, com o transcorrer do tempo — tendo seu ápice no decênio de 2010 —, o que inicialmente parecia ser reivindicações genuínas, transformou-se em radicalidade. Isso se refletiu principalmente em campanhas sociais que excederam o limite, protestos violentos e hostilidades virtuais, afastando até mesmo os próprios apoiadores moderados, como Barack Obama. Durante uma entrevista para a Obama Foundation em 2019, ele expressou sérias preocupações quanto ao comportamento nocivo dos militantes. “Isso não é ativismo. Não está provocando mudanças”, ele disse. “Se tudo o que está fazendo é lançar pedras, provavelmente não chegará muito longe”. O ex-presidente seguiu firme ao abordar assuntos espessos: “Essa ideia de pureza, de nunca se comprometer, de estar sempre politicamente woke e todas essas coisas”, afirmou. “Você deveria superar isso rapidamente”. Como esperado, Obama foi severamente criticado pelos adeptos wokistas. 

Muito desses excessos originam-se em redes sociais, local de maior embrutecimento da atualidade. Em 2018, a professora e booktuber Tatiana Feltrin viu-se arrastada para um vespeiro online simplesmente por acompanhar uma deputada estadual em plataformas digitais. Sua vida privada tornou-se o epicentro de um tumulto orquestrado por uma horda de fanáticos, em que cartas foram enviadas para escolas com intenção de proibi-la de exercer sua profissão em sua cidade. Três anos depois, a ativista feminista Marion Millar foi acusada pela polícia escocesa por supostos crimes de ódio em seus tweets. Um deles era uma foto de uma fita sufragista amarrada a uma cerca. Segundo os peritos em mensagens subliminares da internet, a imagem representava alegoricamente o bigode das mulheres trans. É inevitável estabelecer correlações entre as mídias virtuais e o episódio de perseguições na Salém do século XVII. Aspectos como descontextualização, histeria, ignorância e fanatismo são os mesmos, só que em contextos diferentes. O Twitter comporta-se como o tribunal especial de Oyer And Terminer: sempre punindo às “bruxas” da forma mais “justa” possível.

Torna-se imperativo permanecer atento aos desafios enfrentados por indivíduos marginalizados devido às falhas nas políticas públicas. Assim, adotar uma “postura desperta” é sempre aconselhável. Entretanto, de forma análoga à visão platônica, que nos encoraja a transcender as sombras da caverna em busca da verdade, é imprescindível estar alerta aos equívocos em nossas próprias atitudes e ações a fim de evitar a cegueira solipsista. Ao tentarmos ideologizar a objetividade de uma concepção analítica, limitamos nossa capacidade de entender e abordar questões sociais com profundidade e eficácia. É necessário fomentar, lentamente, uma intensa reflexão crítica e metacognitiva. 
O entendimento epistêmico – que se refere à nossa compreensão e conhecimento sobre como adquirimos e validamos informações – desempenha um papel fundamental na maneira como percebemos e interagimos com o mundo ao nosso redor, desde os filósofos pré-socráticos. Quando a busca pelo conhecer objetivo se torna subordinada a pautas ideológicas, os fatos são distortos, ignorados ou negados para se ajustarem a uma narrativa específica, minando com isso a integridade da produção de conhecimento de uma sociedade.




Referências

1. Aristóteles. (2016). Tratados de lógica (Órganon) I: Categorías y tópicos sobre las refutaciones sofísticas. Biblioteca Clásica Gredos.

2. Orwell, G. (2021). Nineteen Eighty-Four. Penguin Classics.

3. Lilla, M. (2017). The Once and Future Liberal: After Identity Politics. Harper Collins.

4. McWhorter, J. (2021). Woke Racism: How A New Religion Has Betrayed Black America. Portfolio.

5. Haidt, J., & Lukianoff, G. (2019). The Coddling of the American Mind. Penguin Books.



Leituras Adicionais 

►https://www.theguardian.com/society/2018/mar/01/how-americas-identity-politics-went-from-inclusion-to-division

►https://www.cbc.ca/news/opinion/opinion-trans-rights-radical-activism-1.6220106

►https://www.theguardian.com/uk-news/2021/jun/04/gender-critical-feminist-charged-over-allegedly-transphobic-tweets

►https://www.aljazeera.com/amp/opinions/2021/6/24/what-is-woke-culture-and-why-has-it-become-so-toxic

►https://www.nytimes.com/2019/10/31/us/politics/obama-woke-cancel-culture.html

►https://www.jkrowling.com/opinions/j-k-rowling-writes-about-her-reasons-for-speaking-out-on-sex-and-gender-issues/

►https://www.telegraph.co.uk/news/2021/06/03/stonewall-advises-organisations-use-parent-has-given-birth-help/