Todo Mundo Odeia o Chris: uma análise da representação do consumo e trabalho no seriado

Sucesso nas manhãs da Record, o seriado discute de modo bem humorado questões do mundo capitalista.


Historicamente, a evolução do consumo foi moldando as sociedades de formas que ainda são estudadas por pesquisadores de todas as áreas. Em seu texto "Raízes Históricas do Consumo", a autora Gisela Taschner fez um apanhado histórico da evolução de práticas consumistas na Europa entre os séculos XV e XVII que colocaram a figura do monarca na centralidade das relações de consumo nas cortes francesas. Consumir naquela época era uma forma de expressar poder, classe e privilégios cedidos pela figura do rei que custeava grande parte dos inúmeros gastos das famílias nobres, como roupas, castelos e festas. O ato de esbanjar era a essência da nobreza francesa do século XVII, porém, com o surgimento da Revolução Industrial no século XIX, o consumo passou a adquirir novos significados que foram evoluindo ao longo dos anos, até que as mercadorias vendidas pela indústria se tornassem tão intrínsecas à vida das pessoas que é impossível pensar em existir na sociedade sem consumir. Em seus trabalhos, Karl Marx fez uma análise profunda dos impactos que a industrialização teve na sociedade inglesa dos séculos XIX e XX por intermédio de seus livros "O Capital e Contribuição à Crítica Economia Política". Através de conceitos apresentados por essas obras como valor de uso, valor de troca, mais-valia, fetichismo da mercadoria, a sociedade pode compreender as armadilhas do capitalismo e como ele alterou para sempre os alicerces sociais e culturais da sociedade civil. 

Mais de um século depois, foi lançado em 2005, na rede de televisão CBS, nos Estados Unidos, o seriado de comédia televisiva "Todo Mundo Odeia o Chris", que conta a história de um jovem negro e sua família morando no Brooklyn na década de 1980. Além da temática racial que permeia todos os episódios da obra, outro tema recorrente no seriado era a temática do consumo, paralelamente ligada às questões trabalhistas dos anos 80. De modo bem humorado, o programa fazia uma representação bastante crítica de práticas consumeristas do período que estão presentes na sociedade até a data de publicação deste artigo. O propósito deste estudo é analisar a aplicabilidade dos conceitos pensados por Karl Marx e entender de que forma o texto do seriado apresenta essas ideias no formato audiovisual.

Para compor a análise pretendida serão objeto de pesquisa três episódios da primeira temporada do programa que melhor representam o propósito deste artigo. São eles: "Todo Mundo Odeia Tíquete Alimentação", "Todo Mundo Odeia Tirar Fotos"e "Todo Mundo Odeia Empregos de Meio Período".


Valor de uso e troca do tíquete alimentação



Criado em 1939 como um incentivo para tirar os Estados Unidos da Grande Depressão de 1929, o programa de tíquete alimentação (food stamps no original em inglês) foi essencial para gerar um estímulo na economia norte-americana e ajudar milhares de pessoas com baixa-renda a sobreviverem durante os anos ruins da economia. O benefício foi reformulado por outros governos em anos seguintes, mas o público alvo e os princípios continuam os mesmos. São oferecidos tíquetes que simbolicamente equivalem a uma determinada quantidade de dinheiro que pode ser usado para fazer compras em mercados e armazéns de comida.

No episódio "Todo Mundo Odeia Tíquete Alimentação" da primeira temporada do seriado em análise, o personagem Julius encontra US$200 dólares em tíquete alimentação na rua e entrega para sua esposa Rochelle para fazer as compras do mês. A matriarca da família por ser orgulhosa, recusa pegar os tíquetes pelo estigma de ser vista como pobre por seus conhecidos a quem tem a opinião como algo importante. Após uma resistência, ela concorda em usá-los, o que leva a um diálogo essencial de Julius para análise pretendida aqui: "200 dólares são 200 dólares, grana é grana". Essa fala faz referência ao conceito de valor de troca formulado pelo alemão Karl Marx em seu livro "Contribuição à Crítica da Economia Política"  publicado em 1859. Segundo Marx, o valor de troca é constituído pela quantidade de trabalho empregada em determinado bem que pode ser trocada por outros bens de valor similares. 

No caso aqui apresentado, o tíquete alimentação equivale a US$200 dólares de trabalho real que pode ser convertido em alimentos, mercadorias destinadas a um uso utilitário. Outro conceito de Marx presente na obra citada é o valor de uso que se estabelece pela necessidade pragmática do bem consumido, por exemplo, compra-se um sapato pela necessidade de andar calçado e compra-se comida porque os seres humanos sentem fome. Contudo, mesmo o dinheiro sendo equivalente em todas as instâncias, há o elemento social a ser considerado na equação. Quando Rochelle vai pagar as compras no supermercado, ela encontra uma amiga e se sente "constrangida" de pagar com os tíquetes por medo de pensarem que a família dela não pode comprar comida. Logo, nota-se que há um temor social de ser rejeitada por usar um método de pagamento destinado à pessoas pobres.


Valor simbólico, resistência e mais-valia



Ainda no episódio do tíquete alimentação, boa parte da sátira presente no texto está na brincadeira feita com a necessidade de consumir produtos alimentícios de marcas famosas, o que causa diversas situações cômicas. No início do episódio, antes dos tíquetes serem encontrados por Julius, Rochelle e seus filhos estão fazendo compras no mercado e eles questionam o porquê ela não leva mantimentos de grandes marcas. Uma narração em off explica que o preço deles era elevado e que por isso, o pai comprava alimentos de marcas genéricas para economizar dinheiro durante o mês. A filha mais nova da família, Tonya, pergunta à mãe se o cereal escolhido para o café da manhã teria algum brinde e ela responde que "...o brinde é você não morrer de fome".

Essa postura não se repete quando os tíquetes alimentação entram em cena, pois estando livre de amarras, a mãe compra apenas marcas famosas de tudo que for possível. Nessa cena, a direção do seriado faz uma brincadeira com a personagem colocando uma música vibrante, fazendo-a jogar os mantimentos no carrinho de compras de maneira exageradamente cômica como se fosse um comercial publicitário dos anos 50.  Quando a família está financeiramente apertada, apesar do pai trabalhar em dois empregos, eles consomem apenas o útil para suas necessidades básicas. Todavia, quando ganham um dinheiro extra, o comedimento econômico deixa de ser regra e eles consomem bens que possuem alto valor simbólico, mesmo que, em teoria, sejam tão úteis quanto os genéricos.

Os autores Mary Douglas e Douglas Isherwood discutem o tema no livro "O Mundo dos Bens" publicado em 1979. Segundo eles, as pessoas adquirem bens pelo seu valor simbólico, que revelam suas identidades, anseios e posição social. Ao comprar produtos alimentícios de marcas famosas, Rochelle se destaca dos demais frequentadores do supermercado, alimentando seu ego, o que valida seu orgulho pessoal ao rejeitar a imagem de pobre. 

A atitude da personagem se relaciona perfeitamente com o artigo "Rolezinhos: marcas, consumo e segregação no Brasil" publicado em 2014 por Rosana Pinheiro-Machado e Lucia Mury Scalco. As autoras fazem um estudo de caso focado nos rolezinhos e o papel das marcas na construção de identidade dos indivíduos das periferias urbanas brasileiras. Segundo as conclusões apresentadas no artigo, os jovens de periferias rejeitam a imagem de pobreza e investem em artigos de luxo para se sentirem parte das camadas mais ricas da sociedade. Seguindo essa lógica, a personagem do seriado compra alimentos caros não por serem melhores, mas sim pelo status que ela ganha aos olhos da sociedade por poder adquirir tais produtos. Uma atitude similar é o foco do episódio "Todo Mundo Odeia Empregos de Meio Período" no qual o protagonista Chris deseja comprar uma jaqueta de couro para impressionar uma menina. A trama começa com uma narração em off screen em que é apontado que todos no bairro de Bed Stuy possuíam uma jaqueta de couro, menos Chris, o que ele considera que o inferioriza aos olhos de sua paixão. Para corrigir esse problema, o jovem de 12 anos começa a entregar jornais sábado à noite com seu pai para conseguir o dinheiro de que tanto necessita.

A medicina nutricional afirma que as pessoas são o que comem, no caso do consumo, as pessoas são o que possuem. Na trama desse segmento, Chris deseja a jaqueta para se tornar descolado, mesmo que ele continue sendo a mesma pessoa internamente. Uma das armadilhas do marketing está na veiculação da ideia de que a vida das pessoas muda se elas consumirem determinado futuro, mas tendências chegam e somem rapidamente como Chris descobre no final. Durante um único dia, o jovem aprende uma das grandes lições sobre relações de trabalho, o esforço empregado no serviço não corresponde a uma boa remuneração no final de cada expediente. Mesmo entregando jornais por toda a madrugada em condições de tempo frias, Chris não consegue os US$50 dólares para comprar sua peça de roupa desejada. Essa cena remete ao conceito de mais-valia defendido por Karl Marx em que a mão de obra não é bem remunerada por seus serviços, enquanto que o lucro do trabalho excedente é captado pelos empregadores. 

Ao final do episódio, Chris recebe de seu pai a quantia de US$25 dólares por sua noite de serviço, porém o preço da jaqueta subiu para US$100 dólares, o que vai exigir que ele trabalhe por mais tempo para conseguir comprá-la. Quando finalmente compra, é tarde demais, pois a onda das jaquetas já passou, fazendo-o ter seu esforço empregado não ter servido para nada. 


Rituais de consumo e gastos inúteis



A temática de gastos por aparências é uma tema recorrente no seriado e se faz presente novamente no episódio "Todo Mundo Odeia Tirar Fotos". A temática racial permeia muitas camadas do humor dessa sitcom, pois, o personagem principal estuda num colégio no qual ele é o único garoto negro. Dessa forma, torna-se alvo de constantes agressões físicas e verbais por grande parte dos estudantes e professores da instituição. Uma das poucas ocasiões em que Chris não desgosta da escola é quando ele precisa se destacar de alguma forma. Na trama em questão, ele precisa tirar uma foto para o anuário escolar, porém não gosta das roupas que sua mãe escolheu para ele vestir.

Ciente de que sua mãe é uma mulher que preza pelas aparências, o jovem convence-a de que se ele for vestido daquela maneira, as pessoas brancas da escola pensarão que a família vive de caridade. A partir desse momento, a mãe de Chris decide trabalhar como uma revendedora da fictícia linha de cosméticos Ivone, uma tarefa árdua, pois suas vizinhas não estão interessadas no produto, apenas na comida que ela oferece nas reuniões de venda. Há dois destaques nessa parte do seriado, o primeiro é relativo ao que Mary Douglas e Douglas Isherwood discutem em "O Mundo dos Bens" de 1979. Basicamente, toda ocasião especial possui rituais de consumo a serem seguidos, por exemplo, numa ceia natalina é quase impossível não ter uma árvore natalina, um peru assado e presentes. Logo, para o ritual de consumo das fotos, faz-se necessário um gasto para comprar roupas novas para as crianças, o que movimenta a economia do setor de serviços como roupas, calçadas e máquinas fotográficas.

Contudo, sem dinheiro para comprar a roupa de Chris, Rochelle decide trabalhar por conta própria para poder realizar o desejo do filho e pega dinheiro da poupança de seu marido Julius para investir na empreitada. A primeira tentativa de venda é um fracasso, o que frustra seus esforços e aborrece seu marido que deseja o dinheiro de volta na poupança, logo quebrando a lógica da meritocracia defendida pela representante de vendas da Ivone no início do episódio. O destaque nessa parte reside na replicação do discurso empresarial de que basta trabalhar que o sucesso acontece, Rochelle aprende que não é tão simples assim, ninguém compra produtos estéticos sem uma finalidade específica. 

Então, ela tem a brilhante ideia de fazer uma segunda reunião, mas, dessa vez, se utilizando de um discurso de vendas mais sincero que ataca a vaidade das mulheres para quem ela deseja vender. Para isso, ela afirma que suas clientes se escondem por trás de um discurso feminista de valorização pessoal quando na realidade apenas não conseguem um companheiro. Ela pega a representante de vendas da Ivone e vende a fantasia de que a mulher tem idade avançada, mas aparenta jovialidade porque utiliza os produtos da marca. A partir de uma calculada injeção de realidade e uma pitada de fantasia, a mãe de Chris vende todos os produtos e fatura um bom dinheiro. Colocar a maquiagem como um potencial rejuvenescedor fez  o produto ganhar um valor simbólico perante às clientes com a promessa de uma juventude duradoura.

Na obra "Vidas para Consumo: a transformação das pessoas em mercadoria", o filósofo alemão Zygmunt Bauman alerta que vivemos em uma sociedade de consumo na qual as pessoas são estimuladas a consumir, transformando as relações pessoais em mercadorias a serem negociadas. Uma passagem do livro sintetiza todo a trama da venda de maquiagem do episódio citado acima: 

"...o principal motivo que os estimula a se engajar numa incessante atividade de consumo, é sair dessa invisibilidade e imaterialidade cinza e monótona, destacando-se da massa de objetos indistinguíveis" (Bauman, 2006, p. 12).


Considerações finais

Esse estudo concluiu que obras de teor marxista foram de forte influência na construção de sátiras do consumo nesta sitcom norte-americana. Conceitos como valor de uso, valor de troca e mais-valia podem ter sido pensados no contexto do século XIX, mas ainda exercem uma grande influência na maneira como as pessoas enxergam as relações de trabalho e a sociedade de consumo. Nesse contexto, "Todo Mundo Odeia o Chris" se destaca como um forte produto cultural de Hollywood que questiona a hierarquia social vigente e faz o espectador pensar em temas raciais e econômicos.


Referências Bibliográficas

BAUMAN, Zygmunt. Introdução: o segredo mais bem guardado da sociedade de consumidores. In: ________. Vida para consumo: a transformação das pessoas 
em mercadoria. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

DOUGLAS, Mary; ISHERWOOD, Baron. Por que as pessoas querem bens. In: _______. O mundo dos bens: para uma antropologia do consumo. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009, p. 51-62.

JENKINS, Henry. Cultura da Convergência. Introdução In:_____ Venere no Altar da Convergência. 2 ed. São Paulo: Aleph, 2009, p. 29-51.

MARX, K. O Capital - Livro I – crítica da economia política: O processo de produção do capital. Tradução Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 204-219.

MARX, K. (1859). Para a Crítica da Economia Política. São Paulo: Abril Cultural,1982 (Os Economistas).

MARX, K. (1867). O Capital (Livro 1). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989, 12. ed.