Os desafios na busca de uma cura em The Last Of Us

The Last Of Us é um game de ação e sobrevivência ambientado em um mundo pós-apocalíptico, em que grande parte da população foi contaminada por um fungo parasitário chamado Cordyceps. Ele alterou a fisiologia das pessoas, transformando-as em criaturas medonhas. A Parte I acompanha a jornada de Joel, um contrabandista que precisa escoltar Ellie, uma adolescente imune à infecção, até um grupo denominado Fireflies, que acredita poder desenvolver uma cura a partir dela.




A peculiar imunidade de Ellie sempre foi um mistério ao longo da história original. Algumas nuances foram reveladas durante uma gravação do médico dos Fireflies, no qual ele expressou ponderações ao tentar compreender o funcionamento da imunoproteção dela. Na adaptação da HBO, contudo, obtivemos mais informações. Aparentemente, sua imunidade refere-se ao Cordyceps alojado em seu sistema circulatório e parte de sua estruturação cerebral, induzindo a produção de um mensageiro químico que confunde o patógeno, evitando assim seu ataque. O organismo fúngico cresceu com Ellie desde o nascimento, quando sua mãe, Anna, foi mordida por um infectado enquanto estava grávida. Mesmo quando exposta ao Ophiocordyceps Unilateralis, o fungo que adentra em seu corpo pensa que ela já faz parte de sua morfologia, permitindo que Ellie permaneça saudável. 

Tentado trazer uma perspectiva científica, essa situação poderia ser equiparada como um tipo de mimetismo molecular, onde uma molécula mimetiza a estrutura ou função de outra, ludibriando a defesa imunológica ou receptores. É um mecanismo que assemelha-se, por exemplo, à estratégia adotada pelo vírus da imunodeficiência humana, que se camufla como célula do sistema imunológico para invadir e subverter demais componentes citológicos. Ademais, existe igualmente uma semelhança em termos de simbiose; mas, devido à ausência de particularidades, torna-se complicado determinar uma correlação ou se a relação seria de caráter mutualista, comensalista ou parasitária.

Os Fireflies pretendiam então extrair Cordyceps de Ellie, multiplicar as células em laboratório, produzir os mensageiros químicos e concretizar uma cura. O problema é que a cirurgia resultaria na morte de Ellie, possivelmente devido à localização do agente etiológico e às complicações do procedimento cirúrgico. Joel, que desenvolveu um forte vínculo paterno com a jovem no decorrer da viagem, recusou-se a aceitar e, em um ato de fúria, eliminou os integrantes dos Fireflies. No entanto, se Joel não tivesse interferido, os Fireflies teriam, de fato, alcançado sucesso no desenvolvimento de uma cura? Esta é uma questão complexa que envolve uma miríade de variáveis. Apesar disso, é possível conjecturar sobre alguns aspectos que poderiam estar envolvidos nesse processo.


Antifúngicos

Estes medicamentos exercem uma função crucial no combate a infecções fúngicas, inibindo o crescimento ou eliminando os fungos. Podem ser administrados por via oral, intravenosa ou tópica, abrangendo uma variedade de opções, como Anfotericina B, Azóis, Equinocandinas, Alilaminas. Ainda sim, fármacos enfrentariam diversos problemas.

Resistência: Cordyceps poderia desenvolver vários mecanismos para se defender, como alterar a sua parede celular, “expulsar” a droga para fora da célula ou inativar o alvo do antimicótico.

Efeitos Colaterais: poderia causar reações adversas extremas, como emese, disenteria, cefaleias, anafilaxia, anemia aguda, insuficiência renal, hepática, entre outras.

Dificuldade de Inserção: a dificuldade de atravessar a barreira hematoencefálica, podendo reduzir expressivamente a eficácia do tratamento, se mostraria exequível.

Danos Irreversíveis: antifúngicos poderiam não ser capazes de reverter os danos causados no cérebro e no corpo dos infectados, apenas retardar ou interromper a progressão da doença, ou seja, os contaminados continuariam sofrendo de sequelas neurológicas, físicas ou psicológicas.


Vacina 

Esta abordagem representa uma estratégia para prevenir e eliminar a infecção, promovendo uma resposta imunológica específica e duradoura. Uma vacina consiste essencialmente em uma substância contendo um agente infeccioso atenuado, inativo ou fragmentado, reconhecido pelo sistema imunológico como não familiar, estimulando a produção de anticorpos e células de memória, e capacitando o organismo a combater eficazmente o agente em exposições futuras. Em relação ao Cordyceps, a vacina teria de conter partes do fungo que fossem capazes de ativar o sistema imunológico sem causar a infecção. Produzir uma vacina contra este fungo seria demasiadamente dificultoso.

Complexidade: diferentemente de vírus e bactérias, os fungos são organismos eucarióticos, possuem núcleo e organelas celulares; seu intrincamento dificultaria a identificação de antígenos, partes dos agentes que desencadeiam resposta imune.

Similitude: fúngicos compartilham características moleculares e estruturais com as células humanas, tornando a distinção entre fungo e hospedeiro desafiadora. Isto poderia decrescer a eficácia da vacina ou aumentar o risco de reações autoimunes.

Pesquisa: menos estudados que vírus e bactérias, fungos carecem de recursos, dados, conhecimento; isso reflete em menor interesse e investimento em pesquisas de vacinas antifúngicas. Em outras palavras, a investigação de históricos médicos seriam precários.

Tempo: o desenvolvimento de uma vacina envolve variedades de etapas, desde a identificação do morbígeno até a produção em grande escala. Considerando a realidade inóspita, escassez de recursos e morfologia do patógeno, isso poderia demorar décadas


Terapia Genética

O método busca tratar e curar a infecção ao modificar ou corrigir os genes defeituosos ou ausentes em um indivíduo. Envolve a introdução de material genético em uma célula-alvo, utilizando vetores como vírus ou plasmídeos. Este material genético pode ter diversas funções, como substituir um gene mutado, “silenciar” um gene indesejado, ativar um gene benéfico ou produzir uma proteína terapêutica. No caso do referido fungo, a terapia deveria eliminar ou inibir o morbígeno no cérebro e no corpo, restaurando as funções normais dos tecidos e órgãos afetados, além de conferir imunidade para prevenir novas infecções. Contudo, teriam inúmeros impeditivos.

Perenidade: garantir a permanência das alterações seria dispendioso, considerando a contínua renovação celular, os mecanismos de reparo do DNA e outros processos biológicos que constituem obstáculos à durabilidade das modificações genéticas.

Segurança: poderia desencadear efeitos contraproducentes, como inflamação, febre, dor, alergia, infecção, rejeição, imunossupressão, toxicidade. Estes efeitos poderiam ser atribuídos também ao vetor, material genético, resposta imune ou integração genômica. Rigorosos ensaios clínicos seriam essenciais para garantir a segurança e efetividade. Esses testes seriam limitados devido à insuficiência de suprimentos.

Tecnidade: a terapia deve visar exclusivamente as células responsivas, evitando reações indesejadas em células normais, exigindo alta especificidade do vetor e material genético para prevenir reações adversas. Dado a exímia habilidade adaptativa do Ophiocordyceps, o manuseamento seria complicadíssimo


CRISPR

A CRISPR (clustered regularly interspaced short palindromic repeats) é uma tecnologia de edição genética que permite a modificação precisa do DNA em organismos. Essa técnica utiliza uma enzima em conjunto com RNA guia para cortar o DNA em locais específicos, possibilitando a edição ou substituição de genes de maneira mais eficaz do que as abordagens tradicionais. Em 2020, as cientistas Emmanuelle Charpentier e Jennifer Doudna foram laureadas com o Prêmio Nobel de Química pelo desenvolvimento da técnica CRISPR-Cas9, revolucionando a biotecnologia. Esta ferramenta poderia ser usada para modificações.

Alterando DNA-Cordyceps: a aplicação dessa técnica visa modificar os genes relacionados à infecção, patogenicidade e resistência do fungo, englobando a inativação de genes ligados à aderência celular, reprodução acelerada, liberação de toxinas, evasão do sistema imunológico. Tal abordagem enfraqueceria o fungo, diminuindo sua capacidade de causar danos aos infeccionados. CRISPR poderia ser administrada diretamente nas células infectadas por mecanismos de transmissão reconhecendo o DNA do fungo, ou talvez indiretamente por vetores integrados ao DNA do eivado, ativados na presença do fungo. Essa técnica poderia ser competente tanto no tratamento de casos avançados quanto na prevenção em potenciais hospedeiros.

Editando DNA-Hospedeiro: centraria na modificação dos genes do portador afetado, incluindo reparar genes danificados para restaurar funções normais das células nervosas e órgãos atingidos. Alternativamente, CRISPR poderia ser empregada para fortalecer genes produtores de anticorpos, enzimas ou proteínas que combatem a afecção, elevando a resistência e biodefesa do infectado. A aplicação seria direta nas células-alvo, mediante de vetores reconhecendo o DNA do contaminado, ou por intermédio de condutores vetoriais integrados ao DNA do hospedeiro ativado pela presença do fungo. Essa abordagem poderia ser usada para curar infecciosos com sintomas avançados, proteger os hígidos ou aqueles em estágios iniciais da doença.


Entretanto, estas abordagens não seriam atribuições fáceis, dada a intrincada capacidade de consectários, dificuldades técnicas e privação de meios:


►Desenvolver, testar e aplicar demandaria recursos financeiros, equipamentos de laboratório, reagentes químicos, vetores genéticos, amostras biológicas e profissionais qualificados;

►Identificar os genes do fungo presentes no DNA humano e entender os efeitos de sua remoção consistiria um profundo conhecimento de biologia, genética e técnicas laboratoriais;

►Assegurar que CRISPR não causasse mutações indesejadas, pois este procedimento poderia gerar erros que resultariam em problemas de saúde ou até mesmo em novas enfermidades, dada a complexidade interligada do DNA humano;

►Elaborar um método seguro de entrega da Cas9 nas células infectadas sem prejudicar as sadias requeriria controle preciso da dose, duração e especificidades.


Inerradicável

Em vista deste panorama singular, é razoável inferir que a concepção de uma cura se revelaria uma tarefa bastante remota. Mesmo na hipótese de êxito, tal conquista não garantiria erradicação, visto que o fungo persistiria na natureza, potencialmente contaminando inúmeras formas de vida suscetíveis a mutações mais severas. Na ecologia, o gênero fungi Ophiocordyceps exerce sua predominância sobre os artrópodes, manipulando-os e fazendo com que se dirijam a locais favoráveis à sua reprodução. No ambiente selecionado, o fúngico se avoluma tanto interna quanto externamente ao corpo de um invertebrado, gerando estruturas denominadas estromas, similares a hastes que albergam os esporos. Esses esporos teriam a capacidade de propagar a contaminação entre os da mesma espécie, sendo disseminados pelo vento ou por outros animais.


O fim é o começo — o começo é o fim

Projetando uma realidade otimista de avanços nas vacinas, por quanto tempo conseguiram manter uma situação estável? Os impactos pós-pandêmicos seriam significativos. Enquanto a vacina prometeria ser a solução, a suscetibilidade da utilização de sua fórmula como uma ferramenta de biocontaminação, pairaria sobre líderes políticos e organizações terroristas. A engenharia genômica poderia criar mutáveis mais letais, destinadas a se tornarem instrumentos de guerra química, alimentando receios quanto a uma potencial escalada para novos patamares de instabilidade global. Nesse sentido, a confiança internacional seria abalada, alianças poderiam se desfazer frente à iminente ameaça de um possível embate biológico. Assim, a sociedade, ao invés de encontrar sua convalescença, poderia, ironicamente, ficar aprisionada em um loop de conflitos alimentados por algo que inicialmente deveria trazer esperança. Diante da nossa corrompível natureza, a probabilidade de a cura ser mais perigosa que o próprio Cordyceps seria considerável.


Laços 

Apesar deste texto possuir elemento especulativo, The Last Of Us não é sobre uma cura. Em um mundo quase totalmente devastado por um fungo mortal e práticas bárbaras de sobrevivência, os personagens personificam o último dos humanos, conforme o próprio título sugere. Fireflies podem nutrir a ilusão de curar a infecção, assim como a FEDRA mantém a convicção de que pode preservar a ordem, mas não importa o que acreditam, são impotentes frente a realidade desesperançosa. Dessa forma, Joel não escolheu Ellie em detrimento da humanidade, pois essa decisão nunca se apresentou como uma opção. Ao resgatá-la, Joel protegeu-a contra facções insidiosas, que, na busca pela imunização, transformaram-se em uma ideologia nefasta, desvirtuando o propósito original da inoculação. 
Em meio a este cenário brutal, onde a redenção para a civilização parece inalcançável, os laços afáveis emergem como os únicos refúgios dos protagonistas. Embora não possam salvar a espécie, Joel e Ellie conseguiram preservar a humanidade um para o outro, evidenciando que, ao final da jornada, a verdadeira salvação residiu na solidez de seus vínculos forjados.



Referências

1. Sheldrake, M. (2020). Entangled Life: How Fungi Make Our Worlds, Change Our Minds and Shape Our Futures. Bodley Head.

2. Doudna, J. A., & Sternberg, S. H. (2018). A Crack in Creation: Gene Editing and the Unthinkable Power to Control Evolution. Mariner Books.