Quando a tradição é o terror

A sociedade, em sua essência, foi moldada pelas tradições. Estas convenções culturais, passadas de geração em geração, desempenharam um papel crucial na união das comunidades. As tradições atuaram como um elo, um canal através do qual os indivíduos puderam se reconectar com suas origens e experimentar um profundo senso de pertencimento. Entretanto, no universo intrigante do conto The Lottery, de Shirley Jackson, tradições — distante de simplesmente fortalecerem vínculos —, assumem um papel macabro.




Num dia ensolarado de verão, a história se inicia em um vilarejo peculiar. Os habitantes se congregam para um evento que, à primeira vista, parece ser a tradicional celebração anual chamada loteria. Aguardando ansiosos pela festividade, a atmosfera de familiaridade e cordialidade envolve a pequena comunidade.

Mr. Summers coordena com meticulosidade o evento realizado na praça central. Aos poucos, as famílias são convocadas para retirar pedaços de papel de uma enigmática caixa preta. O chefe de família que tiver a “sorte” de retirar o papel marcado com um círculo preto é proclamado o vencedor.

Conforme a trama se desdobra, a natureza insidiosa da loteria é revelada: a pessoa sorteada é alvo de um sacrifício brutal, executado por meio de um impiedoso apedrejamento por toda população. Essa prática bárbara, enraizada em um passado remoto, perdura como um meio de assegurar a abundância na colheita, segundo a tradição local. “Loteria em junho, milho será farto em breve”, diz orgulhosamente Mr. Warner, que já está na sua 77ª loteria.

Uma das maiores realizações da autora é sua habilidade de manter uma aura de normalidade enquanto revela gradualmente a verdade aterradora. Esse feito consiste em uma exímia competência de elucidar a atrocidade coletiva sob a aparência rotineira. Os moradores, vinculados pelos antigos preceitos, não oferecem indagações sobre a legitimidade ou origem do costume sangrento, mesmo quando isso culmina com a cruel revelação do “ganhador”. A manifestação da disposição em participar, demostra de maneira vívida a influência da consonância em suprimir a capacidade intrínseca de discernimento.

Este comportamento dos residentes também assemelha-se com certas concepções apresentadas por José Ortega y Gasset em sua obra La Rebelión De Las Masas. Gasset mencionou que o “homem-massa” é aquele que se contenta em viver na superfície, sem buscar o aprofundamento; deixam-se levar por conjecturas alheias, sem exercer sua autonomia, sendo um mero instrumento das forças coletivas. Incapazes de se contrapor às ideias que os cercam, esses indissociáveis tornam-se, assim, agentes do mal, muitas vezes sem perceber, como observou Hannah Arendt em sua análise do julgamento de Adolf Eichmann no livro Eichmann In Jerusalem

Em alinhamento com o conceito arendtiano de “banalidade do mal”, os personagens de Jackson exemplificam como a resignação de pensamento forjada no cotidiano pode induzir indivíduos aparentemente comuns a participarem de atos perturbadores, revelando a fragilidade humana inerente à aceitação apática de padrões hostis.

Shirley Jackson produziu sua obra no período pós-Segunda Guerra Mundial e escolheu preservar o anonimato em relação à vila, sua localização e até mesmo alguns detalhes da trama. Essa ausência de especificidade confere uma dimensão universal, sugerindo que poderia acontecer em qualquer. A escritora nos faz questionar se, inadvertidamente, não estamos participando de algum tipo de loteria em nossas próprias vidas, adotando pensamentos ou práticas que prejudicam pessoas ao nosso redor sem perceber.

Embora seja um livro de poucas páginas, sua densidade de simbolismos é notável. Cada componente, personagem e ação carregam uma multiplicidade de significados que se revelam ao longo da narrativa. Nessa tessitura semiótica, cinco elementos se destacam: 

A caixa preta, empregada para sortear os nomes dos habitantes destinados a serem apedrejados até a morte, é um emblema da aceitação inquestionável das normas. Sua aparência antiga e desgastada reflete a decadência moral oculta sob sua fachada de simplicidade;

Os papéis podem simbolizar à sorte, injustiça ou a vulnerabilidade diante da impotência inerente aqueles escolhidos para o sacrifício, destacando a arbitrariedade que pode infiltrar-se no processo;

As pedras, coletadas com entusiasmo pelas crianças, prontas para apedrejar um de seus próprios parentes, são um testemunho da violência normalizada. Isso evidencia a capacidade das sociedades em perpetuar padrões nocivos mediante a persistente prática de doutrinação gerencial que acomoda as percepções de sucessivas gerações;

O rito da loteria pode ser visto tanto como um elemento utilitarista referente a resistência a mudanças quanto uma expressão de um tipo “arquétipo do sacrifício”, em que uma pessoa é escolhida aleatoriamente para morrer em prol do bem comum;

Por fim, Tessie Hutchinson, personagem sorteada, personifica o arquétipo rebelde expressado através de seu clamor por justiça. Seu sobrenome, por sua vez, é carregado de simbolismo trágico e irônico, já que ela seria descendente de Anne Hutchinson, religiosa banida de Massachusetts no século XVII por desafiar os ditames da ortodoxia.

Com suas adaptações em diversos meios, incluindo, rádio, televisão, cinema, teatro e ópera, The Lottery expõe a face mais obscura da conformidade social. Este conto é reconhecido como uma arrepiante alegoria dos aspectos mais sombrios da natureza humana na literatura norte-americana.