O Sobrenatural Na Era Vitoriana

Durante o reinado da rainha Victoria, Inglaterra viveu um período de profundas mudanças. luxuosos bailes de máscaras e as fábricas empoeiradas ilustravam o contraste de uma sociedade que, com a urbanização e industrialização crescentes, se afastava cada vez mais do mundo natural. Esses eventos não só transformaram o tecido sociocultural, mas também influenciaram a arte de contar histórias sobrenaturais.



Histórias de fantasmas vitorianas frequentemente exploravam a desorientação coletiva e utiliza lendas para acentuar a sensação de inquietação. Entre as lendas urbanas mais notórias desse período estava a de Spring-Heeled Jack, uma figura enigmática que supostamente aterrorizava Londres nas décadas de 1830 e 1840. Descrito como um homem com uma aparência ameaçadora, muitas vezes usando um manto negro e uma máscara que ocultava seu rosto, ele era célebre por sua suposta habilidade sobrenatural de saltar grandes distâncias. Os relatos alegavam que ele atacava suas vítimas com garras afiadas e um olhar maligno, e alguns ainda afirmavam que ele podia até mesmo respirar fogo. Essa figura misteriosa foi explorada em folhetins e por escritores amadores, gerando uma onda significativa de pânico e especulação entre a população. Apesar de Spring-Heeled Jack ter se tornado uma figura icônica no folclore britânico, sua existência, ainda que fictícia, refletia inconscientemente os receios e preconceitos da época, particularmente os direcionados a imigrantes e à crescente sensação de insegurança nas cidades em expansão.


Arquitetura gótica, mansões herméticas, charnecas sombrias e casas antigas rangentes eram cenários ideais para o imaginário literário. O memorável romance Wuthering Heights, de Emily Bronte, utilizou o sobrenatural para abordar os anseios inerentes às convenções de sua época. A trama apresenta duas propriedades distintas, Wuthering Heights e Thrushcross Grange, que, não apenas personificam os diversos conflitos internos dos personagens, mas também representam simbolicamente classes sociais contrastantes. Ambientado nas charnecas desoladas, Bronte empregou almas vagantes como metáforas para abordar a culpa, inevitabilidade, obsessão e vingança, culminando nas nocivas ações dos personagens principais — em um intricado ciclo de destruição e renascimento. Enquanto isso, a contista Louisa Baldwin, renomada por suas intrigantes escritas fantasmagóricas, habilmente retratava lugares gélidos e arrepiantes, imersos em elementos ideais para serem desfrutados diante de uma aconchegante lareira esculpida em mogno. A áurea lugente de seu conto How He Left The Hotel foi usada por Stephen King na criação de seu livro The Shining


Outro aspecto influente foi a rígida moralidade vitoriana. A noção puritana de condenação para o pecado era uma característica profundamente arraigada no âmago da sociedade. As pessoas viam as normas como uma parte fundamental de sua identidade e acreditavam que o desrespeito deveria punido, muitas vezes de maneira severa. Personagens que desafiavam os preceitos, seja por ambição, paixões proibidas ou transgressões de decoro, constantemente se viam em situações de grande pavor. O mal se manifestava como uma força persecutória que penitenciava aqueles que se afastavam do “caminho da virtude”. O livro de Robert Louis Stevenson, Strange Case Of Dr Jekyll And Mr Hyde, personifica essas características ao abordar as consequências do pecado de seu protagonista. Dr. Jekyll, buscando satisfazer seus “desejos ímpios”, cria o Mr. Hyde. Este personagem, sob perspectiva semiótica, é uma materialização dos pecados do próprio Jekyll. A punição vem na forma da degradação de honradez e da devastação que Hyde traz ao longo da trama. Da mesma forma, a ficção gótica The Picture Of Dorian Gray, de Oscar Wilde, abordou a decadência moral, a vaidade, corrupcão do belo e a verdadeira natureza pecaminosa de Dorian Gray. 


A fascinação pelo paranormal também estava entrelaçada com profundo interesse pelo ocultismo. Esta época foi caracterizada pelo nascimento de algumas sociedades secretas — como a Hermetic Order Of The Golden Dawn — e por uma proliferação de sessões espíritas, sendo acompanhado pela difundida prática da fotografia espírita, predominantemente adotada por famílias abastadas, impulsionada em grande medida pela dor da perda. Essas crenças passaram a ser questionadas à medida que o pensamento empirista britânico ganhava força nas áreas científicas e na emergente “proto-psicologia”. O polímata Alexander Bain, por meio de suas obras The Senses And The Intellect e The Emotions And The Will, discutiu acerca do sistema nervoso, memória, hábitos, emoções, sentidos e suas interações no comportamento humano. Tal compreensão da mente humana e de suas vulnerabilidades exerceu incumbência crucial na criação de tropos fantasmais na literatura de horror. Autores passaram a adentrar ainda mais na psiquê complexa de seus personagens, borrando as fronteiras entre a racional e irracional. Isso pôde ser evidenciado em The Turn Of The Screw, de Henry James, onde a instabilidade emocional da governanta nos deixa questionando sobre a veracidade das aparições macabras.


À medida que a sociedade britânica passava por mudanças, os monstros literários ganhavam imensa notoriedade. Exemplos destacáveis incluem o besouro metamórfico em The Beetle, de Richard Marsh, a múmia reanimada de Jane Loudon em The Mummy, os alienígenas de H. G. Wells em The War Of The Worlds, e o principal expoente de seu tempo: Frankenstein. Tendo escrito em uma época anterior, a obra-prima de Mary Shelley apresentou uma história substancial ao abordar as angústias existenciais de uma criatura vivificada. Ética científica, isolamento, preconceito, propósito e criador versus criatura, são algumas questões deste emblemático romance epistolar. Em Drácula, a típica retidão vitoriana está presente, com personagens principais sendo retratados como virtuosos, contrastando com a figura imoral do sanguessuga transilvaniano. Embora o sobrenatural esteja em sua superfície, a história também discute temáticas como a religiosidade, tecnologias emergentes, costumes e os horrores provenientes da falta de controle do próprio corpo. Mesmo o Conde Drácula não tendo sido o primeiro vampiro — vide o livro Carmilla de Sheridan Le Fanu — Bram Stoker estabeleceu as bases definitivas para o folclore vampírico.


Os escritores britânicos eram proficientes na escolha das palavras. Este período deu origem a alguns dos autores mais celebrados da língua inglesa, que se destacaram na arte de criar prosa vívida, capaz de mergulhar os leitores nas páginas envolventes que concebiam. Obras de autores como Charles Dickens, Charlotte Riddell, Wilkie Collins, George Meredith, Rhoda Broughton, Elizabeth Gaskell e Thomas Hardy demonstraram seu virtuosismo linguístico na criação de um senso de tensão por meio de descrições refinadas com um profundo entendimento do ritmo. A habilidade admirável dos vitorianos em criar histórias inquietantes foi um feito notável que enriqueceu o acervo literário e a tessitura cultural, deixando um legado que continua a enamorar até os dias atuais. Seja por meio de seres fantasmagóricos, extraterrestres, relíquias amaldiçoadas ou figuras míticas, o século XIX britânico assegurou um lugar imarcescível na história da sobrenaturalidade.