Da depressão personificada pela figura sinistra do Senhor Babadook, em The Babadook (2014), ao luto encarnado pela presença lúgubre de Nothing, em The Night House (2020), o cinema de terror tem explorado intensamente a saúde mental como metáfora na última década. Em 2020, o curta-metragem Laura Hasn't Slept, trouxe Sorridente, uma entidade sombria que simboliza traumas, acrescentando uma camada perturbadora a essa tendência e consolidando-se como um novo ícone do gênero.
Na história de Laura Hasn't Slept (2020), acompanhamos Laura (Caitlin Stasey), uma jovem mulher atormentada por um pesadelo recorrente envolvendo um homem sorridente. Durante uma sessão com seu terapeuta, ela revela seu intenso pavor de dormir, causado por uma inquietação noturna constante e uma sensação persistente de estar sendo observada por um sorriso. À medida que a conversa avança, Laura percebe que pode não estar segura nem mesmo na terapia, embaralhando lentamente ainda mais a linha entre realidade e sonho. Apesar do curto tempo de duração, Parker Finn consegue construir uma crescente tensão psicológica e oferecer um vislumbre intrigante de uma criatura que seria posteriormente explorada em seu longa-metragem dois anos depois.
Em Smile (2022), seguimos a trajetória de Rose Cotter (Sosie Bacon), uma psiquiatra que testemunha um evento traumático em seu local de trabalho. Após sua paciente, atormentada por aparições de uma figura sorridente amentradora, cometer suicídio na frente de Rose, a psiquiatra começa a experimentar visões aterradoras, desencadeando uma série de eventos horríveis em sua vida. Um dos principais destaques deste filme é que, além de explorar a luta interna da protagonista, a história retrata de forma crivel o impacto desses eventos sobre as pessoas ao seu redor: seu namorado, sua irmã, seu cunhado, colegas de trabalho, pacientes e até seu ex-namorado. Todos são afetados, ilustrando como as instabilidades mentais podem reverberar profundamente no entorno social.
Smile 2 (2024) é sobre a popstar Skye Riley (Naomi Scott), que atravessa um período turbulento após a morte de seu namorado em um acidente de carro. Enquanto tenta reconquistar sua reputação na indústria musical e superar sua dependência de drogas, seus esforços são interrompidos ao presenciar seu amigo Lewis (Lukas Gage) esmagar o próprio rosto com uma placa de peso. Desde então, Skye começa a experimentar alucinações, fazendo com que sua saúde mental se deteriore gradualmente. Essa sequência aborda a ideia de que, embora uma pessoa possa aparentar ter tudo — fama, dinheiro e sucesso —, esses fatores são irrelevantes diante de uma mente fragilizada e sem propósito. Skye não é apenas consumida pela entidade, mas também por seus próprios erros, que afastaram pessoas que a amavam, como sua melhor amiga, Gemma (Dylan Gelula). Com cenas viscerais e desconcertantes, Smile 2 se consagra como um dos melhores filmes de terror do ano.
Essa criatura é vista pelos personagens como uma maldição transmissível: ela amaldiçoa indivíduos traumatizados, assombrando-os até que suas mentes se desintegrem. Dessa forma, a entidade toma posse do corpo da vítima, levando-a a cometer suicídio na presença de uma testemunha, que, por sua vez, se torna o próximo alvo da maldição. Para aqueles familiarizados com os tropos do gênero, essa dinâmica remete aos filmes The Ring (2002) e It Follows (2014). No entanto, ao contrário de uma entidade que se aproxima lentamente da pessoa infectada ou de Samara emergindo do poço em sete dias para matar seus alvos, o Sorridente mantém interações contínuas com a vítima. É como se esse ser tivesse os poderes de Freddy Krueger, mas, além de atuar nos sonhos, também manipula a percepção da realidade da pessoa que assombra.
Tudo o que foi demonstrado até agora indica que essa entidade é extremamente difícil de ser combatida. Repetir para si que está no controle ou tentar expulsá-la com afirmações que questionam sua existência tem se mostrado ineficaz. Mesmo a tentativa de transferir a maldição para outra pessoa, cometendo um assassinato na frente dela para traumatizá-la, não é uma garantia. No primeiro longa-metragem, o detento Robert (Rob Morgan) utiliza esse método, mas a questão é: ele realmente teve êxito ou foi o próprio Sorridente que permitiu essa situação? Se a criatura exerce total domínio sobre seu hospedeiro, agindo como um parasita, ela pode simplesmente optar por não o deixar ao perceber que a próxima vítima não lhe forneceria os “nutrientes” necessários para sua sobrevivência.
O suporte profissional também pode ser insuficiente, pois o processo de absorção do trauma é único para cada pessoa e não pode ser acelerado para se ajustar a fatores externos. Esse processo depende de uma combinação complexa de fatores biológicos, psicológicos e sociais, especialmente no que diz respeito ao uso de fármacos antipsicóticos e moduladores gabaérgicos, que atuam na regulação dos neurotransmissores e na estabilização do sistema nervoso. Ainda que o paciente faça terapia, a entidade pode criar inúmeras barreiras. Por exemplo, a pessoa pode achar que está fazendo o tratamento regularmente, mas, na verdade, pode nunca ter saído da própria casa. Tudo o que ela acreditou ter vivido pode ter sido apenas uma ilusão, como exemplificado durante a fatídica jornada de Skye.
Além disso, o trauma de presenciar um suicídio não é o único fator que fortalece a criatura; o histórico de saúde mental da vítima tem igualmente um impacto considerável. Rose, apesar de ser psiquiatra, lutava com a autossabotagem e carregava a culpa pelos problemas mentais de sua falecida mãe. Marcada por tragédias, Skye tornou-se a presa perfeita, facilmente manipulada como um joguete pelo Sorridente. Assim, quanto mais desafios prévios uma pessoa enfrenta, mais forte se torna a entidade, reduzindo drasticamente as chances de sucesso em abordagens psicoterapêuticas. Talvez em um possível Smile 3 se revele algumas pistas sobre as vulnerabilidades desse ser demoníaco. Por ora, porém, seus poderes parecem ilimitados quando ele toma posse de suas vítimas.
Em termos semióticos, a entidade pode ser vista como um signo visual que subverte o sorriso, transformando-o de símbolo tradicional de contentamento em um reflexo de medo e manipulação. A inversão sugere que, sob a aparência de alegria, podem existir camadas profundas de repressão emocional, onde máscaras sociais escondem angústias. Essa expressão sombria do ato de sorrir da criatura expõe uma tensão latente entre a imagem e a emoção real, evidenciando como normas sociais e demandas profissionais podem levar o indivíduo a negligenciar ou ocultar seu verdadeiro estado emocional, especialmente na rotina dos artistas. Se para carreira de Skye Riley o sorriso é um ferramenta de autodefensa, o demônio sorridente faz disso uma arma para ampliar o sofrimento da popstar.
Como alegoria do trauma, o Sorridente personifica a importância de procurar orientação especializada. No primeiro filme, Rose chega a dar um passo em direção a essa questão durante suas interações com a Dra. Madeline (Robin Weigert); entretanto, ao invés de se colocar como paciente, ela solicita à terapeuta que lhe prescreva medicamentos. Quando seu namorado Trevor (Jessie T. Usher) e colegas de trabalho a aconselham a buscar assistência psicológica, ela reage com negação e, consequentemente, se isola. Skye, por outro lado, já fazia terapia antes de ser amaldiçoada, mas abandonou o tratamento ao começar a ser assombrada. Nos momentos em que menciona não estar psicologicamente apta para seguir com a turnê, já se encontra sob domínio da criatura. Mesmo quando o enfermeiro Morris (Peter Jacobson) oferece auxílio — independente de ele existir ou não, a mensagem permanece —, Skye rejeita a primeira oferta.
O diretor Parker Finn utilizou duas protagonistas de contextos econômicos distintos para reforçar que a adversidade psicológica é capaz de preencher a mente por completo, seja qual for o tamanho da conta bancária. Parafraseando o neuropsiquiatra Viktor Frankl, em
Man's Search For Meaning (1946), o sofrimento humano assemelha-se ao comportamento de um gás: uma vez liberado em uma câmara vazia, ele se espalha de maneira uniforme, ocupando-a inteiramente, independentemente de seu volume. Sendo assim, as instabilidades mentais podem afetar profundamente a mente de uma pessoa, desconsiderando sua origem social. Em um século marcado por uma crise de saúde mental, a melhor forma de evitar o Sorridente em nossas vidas é buscar apoio profissional quando necessário e manter nossa mente sana ao nos apoiarmos em um propósito sólido.