Baby Reindeer e as lições sobre responsabilidade individual



É comum na nossa sociedade adotamos a postura de que “tenho o direito de estar aqui, portanto, é seu dever respeitar”. Recordo-me de um incidente em que o semáforo estava vermelho e um carro se aproximava em alta velocidade. A pessoa ao meu lado decidiu avançar, dizendo: “ele com certeza me viu e vai parar”. O carro não parou e quase provocou um acidente na esquina seguinte. Perguntei-me: por que arriscar a própria vida dessa maneira, confiando seus os direitos a outros? Não teria custado nada a ela simplesmente esperar por alguns segundos. 


Embora ambicionamos um mundo onde a instrução cognitiva seja a norma, vivemos numa uma realidade hostil, habitada por seres que, apesar de civilizados, ainda retêm seus instintos mais primitivos, muitas vezes ocultos sob uma fina camada de verniz social. Dessa forma, a prevenção ocasionalmente pode ser uma estratégia mais eficaz para garantir nossa seguridade em cenários de potencial ameaça. 


Se alguém optar por vestir-se de maneira seminua por uma localidade conhecida por sua criminalidade e acabar sofrendo algum tipo de violência, sua condição de vítima e a culpa do agressor são absolutamente indiscutíveis. Contudo, isso não exime totalmente a pessoa de responsabilidade. Considere que, da mesma forma que verificamos ambos os lados antes de atravessar uma rua movimentada — mesmo tendo o direito de passar na faixa de pedestres e os veículos sendo obrigados a parar — devemos saber usar medidas precavidas para maximizar nosso bem-estar.


Isso não significa que a culpa recairia sobre à vítima se o carro não parasse, mas é vital enfatizar a prudência como ponto-chave para nossa proteção. De modo similar, apesar de termos o direito de nos vestir como quisermos, temos igualmente a responsabilidade de estar cientes dos possíveis riscos e tomar diligências protetivas sobre vestimentas em determinadas áreas. Se aplicássemos esse singelo discernimento em nossas cotidianidades, várias tragédias poderiam ser evitadas.


Essa dinâmica é retratada de forma análoga à minissérie Baby Reindeer. Em diversas ocasiões a trama ilustra situações em que os personagens poderiam ter estabelecido limites preventivos. O fato de ter sido criada e protagonizada por Richard Gadd — que na vida real foi vítima de uma perseguidora desequilibrada — faz com que o enredo sugira, inclusive, o enfrentamento de erros evitáveis decorrentes do tumultuado passado do artista. 


Composta por sete episódios, Baby Reindeer segue a trajetória de Donny Dunn, que se encontra aprisionado em circunstâncias aflitivas após um evento que parecia trivial em seu local de trabalho. Este contratempo envolve-o em uma espiral angustiante, onde ele é compelido a lidar com a implacável perseguição de Martha, ao mesmo tempo que precisa confrontar com memórias traumáticas.




A relação entre Donny e Martha, em inúmeros momentos, assemelhou-se a um fatídica condição de codependência. A codependência é um termo usado no campo da psicologia para descrever um tipo específico de relacionamento disfuncional, em que uma pessoa se torna excessivamente dependente da aprovação de outra e permite que o comportamento dessa outra pessoa afete-a de maneira significativa. 


Depois de todo o sofrimento causado por Martha, Donny demonstra uma preocupação que vai além da mera empatia pela saúde e resguardo dela. Esta preocupação, quase compulsiva, muitas vezes levou-o à indiligência de seu próprio autocuidado. Ele mantém contato constante, direito e indireto, com sua perseguidora, alimentando sua própria vaidade e necessidade narcísica de atenção.


Martha, por sua vez, exibe dependência extrema de Donny para validação. Sua obsessão por ele se transforma em um comportamento cada vez mais agressivo, culminando em episódios de violência física e psicológica que afetam não apenas Donny, mas também aqueles ao seu redor. Com histórico de crimes e prisão, a personagem expressa traços de desordem delirante, depressão e possíveis questões internas não resolvidas provenientes de sua criação infantil. 


Durante a maioria da história, o que impulsionou Martha foi a atenção que Donny lhe concedia, algo que aludia ao seu brinquedo de infância, enquanto a motivação de Donny residia na plateia que Martha simbolizava. Na realidade, quem ultrapassou os limites, desde o início, foi Donny, ao permitir a repetição das ações de Martha. Foi ele quem estabeleceu o vínculo e, quando percebeu e tentou rompê-lo, já era tarde demais.



Evidentemente, é impossível desconsiderar o fator psicológico dos personagens ao avaliar seus atos. Suas ações podem ter tido influências de condições pregressas de instabilidade emocional. Nesse contexto, a inculpabilidade pode ser questionável. No entanto, suas irresponsabilidades em relação ao cuidado com a própria saúde mental, combinadas com condutas degradantes, mesmo em instantes de lucidez, acaba por se transformar em provas que lhes são desfavoráveis.


Devido à sua intensa ambição de se tornar um comediante bem-sucedido, Donny não somente aceitou — inconscientemente — as decorrências que vieram com essa busca, mas também as procurou ativamente. Ele viu nelas um meio para alcançar seu objetivo, um caminho doloroso para o êxito que tanto desejava. Donny envolve-se em um vórtex autodestrutivo, tornando-se simultaneamente vítima e algoz de si.


Iniciativa pessoal é uma parte preponderante no tratamento psicológico em vários casos. Ela implica o entendimento de que cada indivíduo desempenha um papel ativo e importante em seu próprio processo de cura e desenvolvimento. Claro que é crucial reconhecer que essa carga deve ser equilibrada com a compreensão de que certos aspectos da saúde mental podem estar além do controle direto do paciente. Infelizmente, essa não pareceu ser a abordagem adotada por Donny.


A atribuição de um grau de encargo próprio à vítima não visa minimizar a gravidade do ocorrido ou ser insensível, mas sim proporcionar uma oportunidade de aprendizado. Seja no cotidiano ou durante uma sessão de psicoterapia, reconhecer a própria parcela de responsabilidade pode ser um passo primordial para o crescimento individual e a prevenção de futuros danos. 



Baby Reindeer serve como um lembrete de que todos temos incumbências de estabelecer limites em nossos relacionamentos interpessoais e cuidar de nossa saúde mental. Responsabilidade individual não significa culpabilizar inteiramente a vítima, tampouco evitar o inevitável. Uma pessoa que toma todas as precauções possíveis contra terremotos não deve ser responsabilizada se sua casa for destruída por um. Alguém atropelado em frente à sua casa ao sair para trabalhar pela manhã não deve ser culpada pelo ocorrido.


Ao mencionar essa questão, refiro-me à ideia de que, uma vez que tenhamos o controle sobre determinada ocasião, sobretudo aquelas com potencial de perigo, os seguimentos recaem sobre nós, de forma justa ou não. Muitas pessoas erroneamente parecem preferir priorizar as consequências em detrimento da prevenção. Embora não possamos controlar o comportamento dos outros, frequentemente podemos determinar nossa resposta e tomar medidas prévias para nos proteger.