Um Horror Chamado Arquipélago Gulag

Na Segunda Guerra Mundial, Aleksandr Solzhenitsyn atuou como comandante no Exército Vermelho, sendo condecorado por duas vezes. No entanto, enquanto estava na Prússia Oriental, ele foi preso devido a críticas feitas a Josef Stalin em correspondência a um amigo. Acusado de propaganda anti-soviética, ele foi condenado a oito anos em campos de trabalho forçado, seguido por degredo interno perpétuo. 

Após ser liberto em 1953, Solzhenitsyn continuou escrevendo clandestinamente durante o exílio, relatando sua traumática experiência como prisioneiro. Ele também reuniu testemunhos de sobreviventes para compor o que se tornaria uma das obras mais importantes do século XX. Dividido em três seções e sete partes, O Arquipélago Gulag combina relatos estremecedores, uma reconstrução histórica fidedigna e valiosas reflexões pessoais.



No primeiro capítulo, intitulado Arrest, a obra começa com uma narração comovente em que o autor descreve a experiência de ser preso e interrogado pela infame polícia NKVD (depois KGB e atualmente FSB). Ele cita as diferentes etapas do processo de prisão, desde a negação das vítimas, passando pela ríspida abordagem policial até a sentença final e a transferência para o temível Gulag — uma rede de campos de trabalho forçado e prisões administradas pelo governo soviético.


“O universo possui tantos centros quantos são os seres vivos que nele habitam. Cada um de nós é um centro do universo, e esse universo se desmorona quando ouvimos as palavras: 'Você está preso!' 

Mas se você é preso, será possível que algo permaneça intacto após esse terremoto? Tanto os mais sutis quanto os mais simples de nós, de mente obscurecida e incapazes de compreender essa deslocação do universo, não encontram, naquele momento, nada mais em sua experiência de vida para questionar além de:

– Eu? Por quê?

Uma pergunta repetida milhões e milhões de vezes antes de nós e que nunca encontrou resposta”  [p. 35].


A NKVD exercia uma influência significativa na sociedade russa através de suas incursões de repressão política, que abrangia desde execuções extrajudiciais em operações conjuntas com a Gestapo durante o Pacto Germano-Soviético até campanhas extensivas para expropriar instituições religiosas. É relatado que no início da fome, a Igreja estabeleceu comitês diocesanos para ajudar as vítimas da fome, arrecadando fundos. Contudo, esses comitês foram posteriormente proibidos, com o dinheiro sendo confiscado pelo Tesouro Soviético. Na região do Volga, lamentavelmente, as pessoas chegaram ao extremo de consumir ervas, solas de sapato e até roer os cantos das portas para sobreviver.


Em The History Of Our Sewage Disposal System, o segundo capítulo traça um panorama histórico sobre a origem e evolução do sistema Gulag, remontando às primeiras colônias penais estabelecidas pelos czares no século XIX. No final da década de 1920, já sob controle do tirano Stalin, o Gulag tinha cerca de 100.000 detentos. Essa quantidade, todavia, eclodiu entre 1929 e 1931, confluindo com a socialização das terras imposta pelo regime soviético. Em 1936, o Gulag já abrigava entorno de 5 milhões de prisioneiros. 


O livro detalha o processo de expansão desse nefasto sistema de trabalho coagido, centrando em três pilares principais: 

1) Entre 1929 e 1931, durante a coletivização da agricultura stalinista; 2) Entre 1936 e 1938, no auge das purgas soviéticas; 3) Imediatamente após a Segunda Guerra Mundial. Este trecho elucida como esse sistema foi gradualmente ampliado e aprimorado pelos bolcheviques após a Revolução de 1917, atingindo proporções inimagináveis sob o stalinismo.



A seguir, é mencionado os numerosos meios de tortura e coerção empregados pela NKVD para extrair confissões e delações dos trabalhadores. Um dos métodos mais brandos incluía uma lâmpada intensamente brilhante, inadequada para o pequeno espaço com paredes brancas, que permanecia acesa continuamente na cela. Esse tormento prejudicava o sono e inflamava as pálpebras dos trabalhadores, causando dor intensa, enquanto os guardas respondiam cinicamente: “Não o deixam dormir? Aqui não é uma casa de repouso!”.


Para evitar que os trabalhadores ficassem incapacitados para as atividades, os tipos de punições variavam. Espancamentos, por exemplo, eram realizados com bastões de borracha, catracas e sacos cheios de areia. Essas formas de castigo são descritas como extremamente dolorosas, especialmente ao atingirem os ossos, como nos casos em que os guardas aplicavam pontapés nas canelas, onde o osso estava quase à amostra, devido à má alimentação.


Desde o amanhecer até o anoitecer, eles eram forçados a trabalhar em turnos impiedosos, carregando toneladas de madeira diariamente, escavando canais e construindo estradas e ferrovias. Seus corpos exaustos mal suportavam o esforço brutal, mas a ameaça de punições severas mantinha-os sempre em movimento. Aqueles que não conseguiam seguir esse ritmo implacável muitas vezes eram enviados para calabouços congelantes.


A escassez de alimentos e roupas adequadas deixava-os à beira da desnutrição e da hipotermia. Os alimentos eram racionados a uma sopa aguada e um pedaço de pão duro mohoso. A falta de cuidados médicos básicos, combinada com os inúmeros castigos físicos brutais infligidos pelos guardas, contribuía para a degradação progressiva da saúde.



Motins e rebeliões eclodiram em vários campos, com o levante de Norilsk em 1953 sendo um dos mais destacáveis. Nesse episódio, milhares de prisioneiros se revoltaram contra as condições de trabalho e as penalidades descomedidas, tomando o controle do campo por vários dias até serem finalmente suprimidos por forças especiais enviadas de Moscou. O autor ilustra a coragem e determinação dos rebeldes, que enfrentaram o sistema mesmo diante de chances ínfimas de êxito.


Além das rebeliões em massa, várias fugas individuais e coletivas ocorreram. Detentos que conseguiam escapar percorriam centenas de quilômetros por regiões inóspitas até atingirem áreas povoadas. Solzhenitsyn detalha as estratégias usadas pelos fugitivos, como esconder-se em vagões de trem, atravessar rios a nado ou camuflar-se entre os trabalhadores. Ele também analisa os dilemas e riscos enfrentados pelos prisioneiros, como a possibilidade de serem capturados, torturados ou mortos pelas patrulhas de caça.


Mesmo aqueles que conseguiam cumprir a pena continuavam a ser estigmatizados e perseguidos pelo intransigente sistema vermelho. Eles enfrentavam restrições de movimento, dificuldades para encontrar emprego, moradia e sofriam desconfiança generalizada. Muitos foram forçados a viver em exílio interno, em regiões remotas, levando suas vidas sem entender os motivos pelos quais haviam sido rotulados como inimigos do Estado.



Solzhenitsyn argumenta que os camponeses da Rússia czarista viviam em condições melhores do que os sob o governo soviético. Ele enfatiza as injustiças que levaram à Revolução Russa e utiliza exemplos para demonstrar como essas questões são insignificantes quando comparadas aos problemas do Estado Stalinista. Apesar de os camponeses serem servos antes do século XIX, eles tinham domingos e vários feriados cristãos de folga, e havia muito menos prisioneiros políticos.


Entre 1825 e 1917, cerca de 6.360 pessoas foram condenadas à morte na Rússia por razões políticas. Embora a tomada de poder pelos bolcheviques liderados por Vladimir Lenin tenha sido relativamente fácil, esse número foi rapidamente superado. Em março de 1919, avalia-se que ocorreram entre 10 e 15 mil execuções arbitrárias. Em apenas algumas semanas, o terror imposto pelo déspota Lenin ultrapassou 92 anos de supressão do tzarismo.


Na seção nomeada The Bluecaps, o autor comenta sobre como os europeus ocidentais tinham sentenciado ex-nazistas por crimes de guerra e crimes contra a humanidade. Em 1966, a Alemanha Ocidental havia responsabilizado cerca 86.000 deles. Ele observou que os soviéticos gostavam de ler sobre isso nos jornais, expressando-se com alegria a cada acusação de um nazista. Solzhenitsyn destacou que, se a Alemanha Ocidental havia condenado 86.000, a URSS deveria, proporcionalmente, ter condenado pelo menos 250.000. Entretanto, apenas 30 pessoas haviam sido culpabilizadas na URSS por crimes contra seus próprios cidadãos.



O autor diz que a notícia da morte de Stalin foi recebida com lamento por diversos segmentos da sociedade. Ele cita que presenciou, profundamente irritado, jovens professoras perguntando-se com lágrimas convulsivas, qual seria o destino de suas vidas após este infortúnio. “Vai ser assim!”, brandou Solzhenitsyn. “Agora não vão mais fuzilar os seus pais! Os seus noivos não serão presos”, completou com rispidez.


Esse trecho me fez lembrar de um dos ensaios de Aldous Huxley, no qual ele discute como a manipulação psicológica pode ser tão eficaz que aqueles que são coagidos a agir têm a ilusão de estar agindo por vontade própria. A vítima deste tipo de manipulação não sabe que é uma vítima. Para ela, as paredes de sua prisão são invisíveis, onde acredita ser livre. Que ele não é livre é aparente apenas para outras pessoas. Sua servidão é estritamente objetiva.


Em uma de suas muitas digressões, o autor diz que a ideologia oferece a justificativa desejada para o crime e a determinação necessária ao criminoso. Segundo ele, ideologia é uma teoria social que permite ao criminoso se absolver diante de si e dos outros por seus atos, recebendo não censuras ou maldições, mas sim elogios e aceitação.


“(...) Foi assim que os inquisidores se apoiaram no cristianismo, os conquistadores no engrandecimento da pátria, os colonizadores na civilização, os nazistas na raça; e tanto jacobinos quanto bolcheviques na promessa de igualdade, fraternidade e felicidade para as gerações futuras. Devido à ideologia, o século XX teve de enfrentar o terrível custo de crimes que ceifaram milhões de vidas” [p. 112].



Em um epílogo elucidativo, Solzhenitsyn reflexiona acerca das atrocidades cometidas pelo regime comunista, revelando uma intrincada dialética entre liberdade e repressão que permeou sua vivência no Gulag. Sua introspecção demonstra como o ser humano, em sua ânsia insaciável por controle total, pode aniquilar sistematicamente a autonomia do indivíduo, esmagando impiedosamente nossa aspiração por liberdade. 


Essa dinâmica de dominação e subjugação também é vista pelo autor como uma questão metafísica — a eterna luta entre a busca pela autodeterminação e as forças desumanizadoras que procuram suprimi-la. Esta visão é reforçada em seus outros livros, como Warning To The West, onde ele discute sobre como a sociedade soviética havia perdido espiritualidade e os valores tradicionais russos, em particular a fé ortodoxa, que ele via como corrompida tanto por monarcas despóticos quanto pelo ateísmo stalinista.


Apesar de ter tecido duras críticas ao comunismo soviético, Solzhenitsyn também desaprovou alguns aspectos ocidentais. Em seu discurso público nos Estados Unidos, ele acusou o Ocidente de desperdiçar a liberdade que a Rússia não tinha, apontando problemas como o materialismo, o individualismo exacerbado e o declínio moral. Para ele, o comunismo e o liberalismo ocidental eram ideologias vazias que desconsideravam a dimensão transcendental necessária ao ser humano.



Durante todos os meus anos de leitora, as três experiências mais lesivas foram: Malleus Maleficarum, um brutal manual inquisitório publicado pelos fundamentalistas Heinrich Kraemer e James Sprenger no período de caça às bruxas; Mein Kampf, a perversa autobiografia de Adolf Hitler; e o The Black Book Of Communism, uma coletânea que se propõe a fazer um balanço dos crimes hediondos cometidos por regimes comunistas em todo o mundo desde 1917 até 1989. 


Neste aspecto, O Arquipélago Gulag também foi uma flutuação emocional, deixando-me envolta de náusea, raiva e tristeza. Cada página virada era uma imersão na mais profunda escuridão que acompanha nossa natureza. Esta obra é, acima de tudo, uma denúncia e um tributo à memória das incontáveis vítimas do assassino regime soviético. Por mais que estes livros sejam leituras extremamente necessárias, são igualmente representações vívidas de um mal capaz de intimidar o mais cruel dos serial killers.   


Embora tenha enfrentado muitas dificuldades durante sua construção, o livro foi um sucesso estrondoso, traduzido para dezenas de idiomas e rendendo a Solzhenitsyn o Prêmio Nobel de Literatura. Da brutalidade dos campos de trabalho forçado à proeminência de palestrante na Harvard University, Aleksandr Isayevich Solzhenitsyn vivenciou uma trajetória marcada pela resiliência e defesa do que ele considerava fundamental para a humanidade. Hoje, mesmo com divergências nos dados sobre os crimes soviéticos, O Arquipélago Gulag continua a ser visto como um marco na literatura contemporânea.